«(…) Não se lembrava de como ali chegara, mas encontrava-se sozinha no seu
quarto. Assim que ouviu a porta fechar-se, abandonou-se ao desespero absoluto.
Deixou-se cair no chão, chorando e soluçando, até gastar todas as lágrimas e
toda a sua energia, deixando-se ali ficar, extenuada. Maria fora instalada no
quarto contíguo, de onde escutava com tristeza. Sabia como a sua senhora ficara
ferida com os cruéis acontecimentos do dia e lamentava-o profundamente. - Por
tudo o que há de mais sagrado, que se
passa aqui? Compreendi que algo não estava bem logo no início e foi por
isso que mandei os soldados atrasarem a sua formação, na esperança de que,
passado algum tempo, a chegada de mais nobres fizesse crescer aquele miserável
grupo de secretários da cidade. Mas não, não arranjaram melhor que uns quantos
padres, uma mão-cheia de cavalheiros e damas e a princesa Margarida, vociferou,
furioso. - Pelos céus, sei de gente mais inferior que foi mais bem recebida. -
Não foi certamente a recepção que esperávamos, concordou Maria. - E onde é que,
em nome dos céus, está Filipe?
Que jogo está ele a jogar? A
sua obrigação é estar aqui, aqui mesmo, neste preciso momento! Como se atreve a
mostrar um desrespeito tão flagrante depois de lhe ter alimentado as esperanças? Sei muito bem o que me
apetecia fazer ao canalha.
Mas na manhã seguinte chegaram
cartas de longe. Lá dentro, as palavras haviam sido escritas a tinta, mas por
fora firmavam-se em sangue. Diziam que o seu Rolando morrera numa caçada em
Roncesvalles.
Maria contemplou a ama, que descansava, pálida, sobre as almofadas do
seu leito de doente. - Foi por causa do poema, inquiriu num tom mais brusco do
que tencionara, ou o quarto arrefeceu
mais rapidamente do que é habitual? Seja por que for, vou guardar o
livro e chamar alguém para acender o lume. Chega de histórias melancólicas;
precisamos é de mais calor. A sério, Senhora, não sei porque insistis em vos
pordes triste com estes contos deprimentes. Já estais suficientemente triste.
Se eu fosse vossa mãe, nunca teria permitido que tais livros chegassem às vossas
mãos. Maria deixara de se dirigir à ama e resmungava agora contra o mundo.
Moveu-se pelo quarto, escondendo o livro ofensivo e indo à porta chamar alguém
que viesse acender o lume. Depois, voltou para junto do leito a fim de apaparicar
a doente. Deu laços nas largas fitas vermelhas que apertavam o pescoço e os punhos
da camisa de noite de Joana e endireitou-lhe a touca branca e o xaile vermelho.
Em seguida, afofou as almofadas e alisou a coberta de pele, sentando-se depois
junto ao leito. Um criado chegou, pressuroso, para tratar da lareira, pondo
mais toros no lume, que ajeitou e arrastou, causando súbitos estalidos e uma chuva
de ruidosas faúlhas vermelhas e amarelas. Depois de ele sair, o quarto ficou em
silêncio, com a excepção do crepitar da lareira, do tiquetaque do relógio e do
som da chuva, que um caprichoso vento outonal atirava contra as janelas.
A corte real dos príncipes era tão magnífica como o seu nome sugeria.
Os aposentos de Joana eram magníficos, deixando todos boquiabertos e o quarto
de dormir não constituía excepção. Para além de quente e confortável, era
luxuoso e ela nunca vira nada assim. Das paredes pendiam sumptuosas tapeçarias
que mostravam cavaleiros lendários que regressavam, triunfantes, de diversos
feitos de valor. Todas as peças de mobiliário eram profusamente trabalhadas; as
mesas ostentavam jarras, taças e estatuetas da mais fina porcelana. O elemento
decorativo mais espectacular era o relógio de ouro sobre a cornija da lareira.
Tinha a forma de um castelo. Estandartes dourados esvoaçavam dos cimos das
torres e do telhado. Alguns cavaleiros descansavam indolentemente, apoiados nos
escudos e outros guardavam a entrada. Das janelas debruçavam-se belas damas,
cujos detalhes minúsculos eram requintadíssimos. Quando Joana entrara pela
primeira vez naquele quarto, alguns dias antes, ficara espantada com o seu
esplendor, admirando todos os pormenores com gritinhos deliciados. Todavia, o
frio intenso apagara-lhe essa alegria. - Sinto-me tão infeliz! Quero ir para casa.
Maria, nunca vivi tantos dias cinzentos e chuvosos; não admira que esteja
doente. Creio que ainda tenho febre. Oh, aqui é tudo tão diferente e tão
confuso. Sinto-me tão perdida e sozinha. - Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas
que ela deixou correr pelas faces». In Linda Carlino, “That Other Joana”, 2007,
Joana, a Louca, Editorial Presença, Lisboa, 2009, tradução de Isabel Nunes,
ISBN 978-972-23-4231-5.
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