Barcelona
«(…) Sim, ele e Guils em competição, a fim de demonstrarem a
resistência de ambos ao vinho, copo atrás de copo, ele sereno e sem perder a
compostura, bebendo sem vacilar, e Guils, feito um farrapo ao terceiro copo,
cambaleante e balbuciante... sim, de facto ia ser uma bela história. Chegados a
terra, a operação de desembarque de Guils voltou a ser árdua. Não recuperara os
sentidos e a sua alta estatura requereu a ajuda de todos quantos puderam correr
a auxilia-lo, além dos passageiros que se acotovelavam na tarefa. Todos menos frei
Berenguer que, sem esperar pelo jovem ajudante, saltou da embarcação sem se
deter nem um instante. Bernard Guils, estendido na praia com Abraão a seu lado,
era a imagem do desamparo. O velho judeu contemplou o moribundo com compaixão e
simultaneamente com preocupação. Olhava em redor procurando algum companheiro
de Guils, alguém que estivesse à sua espera. A urgência do doente em descer a terra
fizera-o pensar que houvesse alguém à espera dele, mas não encontrou ninguém, a
não ser a frenética actividade que a chegada de um navio originava.
Bem, pensou, há que levar o homem para local
conveniente, talvez ainda haja alguma esperança de vida. Desconhecia o
tipo de veneno que lhe tinham ministrado, mas podia tentar encontrar um
antídoto, um remédio qualquer que devolvesse aquele homem à vida. Todavia, não
tinha grandes ilusões, aquela poção há dias que atacava o organismo de Guils,
enquanto permanecia deitado na enxerga, sem pedir ajuda, morrendo na mais
completa solidão. Desde o princípio que Abraão simpatizava com Guils,
agradava-lhe mesmo sem o conhecer, tinha a certeza de que era um homem bom e
não pensava abandoná-lo. Mas necessitava de ajuda urgente para o levar para casa
e era evidente que não o podia fazer sozinho. Olhou, procurando um rosto amigo,
um rosto que fosse capaz de sentir piedade perante aquela situação e viu que
Ricard Camposines, o comerciante, se aproximava deles.
- Não devia ter-se embriagado
logo no último dia, disse um tanto desiludido. - Não julguei que fosse homem desse
tipo, não o vi beber em toda a travessia. Escolheu uma má altura. Abraão observou-o
atentamente. Não tinha a certeza de que Camposines abandonasse a vigilância da
carga para o ajudar e muito menos no porto, onde o controlo das mercadorias
tinha de ser minucioso. Pensou uns segundos, mas a urgência da situação não lhe
permitia muito tempo em conjecturas. - Ora,Camposines, começou a dizer,
cauteloso, este homem não se acha nesta situação por causa da bebida. Está doente
e precisa de tratamento. - Doente?
Parecia mais forte que um penedo... Tendes
a certeza? – Absoluta, redarguiu Abraão. - A doença é real. Foi
envenenado e é urgente que consiga levá-lo para minha casa a ver se anda é
tempo de encontrar uma solução. Não há tempo a perder, de contrário o homem
morre. Preciso de ajuda, Camposines.
O comerciante esboçou uma careta de espanto, as palavras do velho judeu
haviam-no impressionado. Envenenado,
na linguagem dele era sinónimo de conjuras e conspirações e ele não queria
problemas, todo aquele escândalo podia prejudicar-lhe o negócio, precisamente
no momento em que tinha conseguido chegar. Porém, simpatizava tanto com Guils
como com Abraão e comovia-o a compaixão que o judeu demonstrava, a sua
generosidade. Sentia-se mesquinho e envergonhado. Contemplou o quadro que tinha
diante dos olhos, um mercenário alto e forte, estendido na praia, inconsciente
e frágil, e um velho judeu com uma força interior que lhe brilhava nos olhos.
Sentiu-se miserável, carecido da coragem que fazia parte daqueles dois homens,
tão diferentes e ao mesmo tempo tão parecidos.
- Auxiliar-vos-ei, Abraão, se
bem que o não possa fazer pessoalmente. Isso ser-me-ia impossível, mas vou
encarregar um dos meus moços de fretes de vos ajudar a levar Guils onde
indicardes. Espero que isso vos sirva de ajuda. - Será esse o melhor socorro
que me podereis prestar, amigo Camposines. Espero que o tempo seja generoso
comigo para poder retribuir-vos este favor. Sou médico e estou à vossa
disposição para o que necessitardes. Esta declaração ficou gravada na mente de
Ricard Camposines: médico, tinha dito que era médico e sabia que os médicos
judeus gozavam de merecida fama naquela profissão. Não era em vão que reis e
nobres os reclamavam. Era um acaso extraordinário, uma lição que tinha de
aprender, fizera com aquele homem uma longa travessia, quase sem lhe ter
dirigido a palavra, amedrontado, Deus escrevia torto e os homens obstinavam-se
em pôr-lhe as linhas direitas. Correu em busca do capataz que dirigia a
operação de descarga, controlando cada fardo que descia da embarcação, tão
picuinhas como o patrão. Ordenou-lhe que procurasse um dos moços de fretes para
um trabalho especial que seria convenientemente remunerado». In
Núria Masot, A Sombra do Templário, colecção Enigmas da História, Sicidea,
2007, ISBN 978-84-611-4998-8.
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