«(…) Logo adiante encontrou as primeiras casas, acotoveladas ao longo
da estrada inundada. Escorrendo em água, a grande aldeia parecia deserta. Só já
no coração da terra descobriu, abrigado num telheiro, um homem gordo em mangas
de camisa, com os polegares metidos nas cavas do colete. À sua pergunta, o
homem acenou ligeiramente com a cabeça, convidando-o a abrigar-se também.
Sempre na mesma posição e no mesmo sítio, mirava atentamente o forasteiro,
reparando no seu fato modesto repassado de chuva, no rosto bem barbeado e na
pasta de couro pendente do quadro da bicicleta, agora encostada a uma estaca. -
Vai lá vender alguma coisa? -
perguntou por sua vez. - Não, não vou vender, disse o desconhecido, limpando novamente
com o lenço a cara e o pescoço. O outro ficou uns instantes silencioso. Parecia
hesitar. Observou com muito interesse o lenço com que o ciclista se limpava e
voltou depois a olhar para a pasta de couro, para o fato encharcado, para a estrada
inundada e para a chuva caindo. - O senhor não é destes sítios. - Não, não sou.
E acrescentou, batendo vigorosamente com os pés no chão para não arrefecer: -
Quem havia ontem de dizer o dia que hoje ia estar. - Não era difícil, disse o gordo.
- Ontem choveu toda a tarde e de noite a chuva não parou.
O ciclista compreendeu perfeitamente estas palavras. Elas significavam:
se não quiseres dizer, não digas o que
te obriga a meteres-te ao temporal. Mas não julgues que me comes por parvo.
Ao compreendê-las assim, pensou que fizera mal em abrigar-se ali. - Tanta chuva
é capaz de dar cabo das culturas. - Não dá cabo de nada, replicou o gordo com
voz irritada. - O mal é se não chovesse. Vê-se bem que o senhor não trabalha no
campo. Se calhar é viajante. - Não, não sou viajante, respondeu o forasteiro. -
Estou a arrefecer por estar parado, acrescentou esfregando as mãos e continuando
a bater com os pés. - Meter-se a esta chuva é que com certeza não dá saúde,
disse o gordo. O ciclista compreendeu também perfeitamente estas palavras: o que tu queres é ir-te embora para
evitares conversa, mas eu entendo-te muito bem. - E o caminho para Vale da Égua? Sai daqui da terra? O gordo, sempre
com os dedos nas cavas do colete, não bulia do mesmo sítio. O rosto parecia
inalterável. Mas nos olhitos avermelhados adivinhava-se a profunda irritação da
curiosidade insatisfeita. - Eu sei lá onde isso fica! - exclamou como se a
pergunta fosse um disparate. Sempre a bater os pés no chão, o forasteiro
suspendeu o movimento das mãos que esfregava e voltou bruscamente a cabeça para
o outro. Instintivamente o gordo deu um passo atrás, como esperando uma
agressão. Já o forasteiro, com gestos lentos, ajustava as peúgas por fora das
calças encharcadas, aconchegava o boné à cabeça e a gola do casaco ao pescoço,
agarrava a bicicleta e saía à estrada. - Então, bom dia. - Vá, com Deus! -
respondeu debaixo do telheiro a voz colérica do gordo.
Abrandara o vento, chovia menos, mas, na estrada inundada e cheia de
covas, a bicicleta rolava com dificuldade. O ciclista lembrava-se do que lhe
haviam dito: apeias-te na estação,
perguntas aí e logo te dizem. Não lhe conviera vir de comboio, mas
deveria ter-se dirigido na mesma à estação. Pensando que se havia de ver da
estrada, resolveu não perguntar nada a ninguém até lá chegar. Diante de um lago
lamacento, ensopado em humidade, a estação, tal como a aldeia, parecia deserta.
Ninguém no átrio, ninguém no balcão das bagagens, ninguém à bilheteira, ninguém
no cais. Nem o ruído de uma voz, nem de qualquer trabalho. Só o tiquetaque da
chuva e o gorgolejar de um ralo invisível. Chegado ao fim do cais o forasteiro,
ao voltar para trás, deu de súbito com um empregado de calças de ganga e samarra
de surrobeco, parado junto ao relógio e olhando distraidamente a linha. À
pergunta respondeu calmamente: - o Zé Cavalinho deve estar por aí e já lho
indica. Ele é lá desses sítios. - E, olhando a chuva, acrescentou, é um grande
ponto, o Zé Cavalinho. Tirou do bolso uma lata com tabaco, serviu-se e
ofereceu: - Uma cigarrada? O
forasteiro limpou as mãos e fez o seu cigarro. Entretanto o ferroviário
enrolara lentamente o tabaco, lambera a mortalha e procurava os fósforos no
bolso». In Manuel Tiago, Editorial Avante!, Lisboa, 1989, 2005, ISBN
972-550-212-4.
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