Um toledano diferente dos outros
«(…) O meu coração sangrou especialmente por ocasião da tomada desta
última cidade; na verdade, em 646,
com muitos amigos granadinos fomos dar ajuda às tropas de Toledo. Sim, contra
os nossos próprios correligionários! A política assim o exigia: o novo reino de
Granada tinha de manter um difícil equilíbrio entre os nossos dois poderosos
vizinhos dado que um e outro estavam mais do que dispostos a anexar-nos. Por
vezes, aliámo-nos aos Merinidas de Marrocos para nos protegermos dos
Castelhanos, outras vezes aos Castelhanos para repelir os Merinidas. Tínhamos
de dar garantias tanto a uns como a outros. Mas destes séculos passados em
Granada, guardo sobretudo a recordação dos dias felizes. Foram numerosos
porque, nesta cidade, encontrava essa mesma vida espiritual, essa alegria de
aprender e também de ensinar que outrora conhecera em Toledo. Bastava o meu
nome de Tulaytuli para me abrir uitas portas incluindo as do palácio do meu
sultão. Fui mesmo conselheiro e confidente de Muhammad V. Vivi na sua
companhia, no maravilhoso palácio de Alhambra. Quando terminavam as audiências
concedidas ao povo na sala do Mexuar, e depois dos notáveis terem sido
recebidos na sala do trono, o meu rei pedia-me que o seguisse até às zonas
privadas do palácio. Aí, sentados no chão durante horas, conversando, gozávamos
da frescura dos jactos de água, da verdura dos jardins, da luz que brincava nas
fachadas cobertas por uma decoração infinita; por vezes o meu olhar seguia uma
das linhas dos cordões de estuque e essa linha nunca terminava, símbolo da
infinitude divina.
Um dia, testemunho de suprema confiança, detivemo-nos no pátio que
marca o centro do harém. Lá em cima, as mulheres dissimuladas por detrás do muxarabiés,
deviam estar a olhar-nos; de vez em quando, um riso cristalino vinha juntar as
suas notas ao murmúrio da água. No centro, uma fonte magnífica: doze leões de
mármore suportam uma grande bacia. Cada leão tem na fronte a estrela de David. Com
a cabeça virada para o exterior, parecem guardar o jacto de água central; mas
são também parte integrante da fonte, visto que a água, inicialmente recolhida
na bacia de mármore branco, sai pelas fauces de cada um deles para depois cair
numa regueira que a distribui por quatro canais. Precisamente, neste dia, a
nossa conversa recaiu sobre essa fonte e sobre esse pátio, e posso reproduzi-la
com toda a fidelidade. Nessa ocasião, compreendi até que ponto o meu soberano
era digno do seu título de Príncipe
dos Crentes. Era como esse monarca ideal que Ibn Zafar apresentava como
mais raro do que o ouro, mais maravilhoso
do que o grifo e mais extraordinário do que a alquimia.
- Príncipe - disse-lhe, essa
estrela de David na fronte dos leões intriga-me. Por que razão está esse
símbolo religioso dos nossos irmãos
judeus neste local? O meu sultão pareceu meditar por instantes como que
para reunir velhas recordações há muito ocultas no mais profundo do seu ser.
Disse-me apenas: - Contaste os leóes?
- São doze, respondi. - Deu-me então esta longa explicação: - Sim, doze leões
que representam as doze tribos de Israel, e a estrela de David, que tão bem
assinalaste, lembra-nos também a origem dessas esculturas. Ornaram, há vários
séculos, o palácio do juiz Ibn Nagrila, vizir de um dos reis ziridas de
Granada. Reparaste decerto também, amigo Tulaytuli, que cada um dos quatro
canais que conduzem a água através das platibandas, se dirige para um dos quatro
pontos cardeais. Esta água que surgiu no centro do pátio evoca essa fonte que,
de acordo com o Alcorão, se encontra no centro do paraíso. O livro do Génesis, na Bíblia, referia já, bem antes,
que nascia um rio no Éden que se dividia em quatro braços: Pishon, Gihon,
Tigre e Eufrates. Sabes, o Islão é o sinal da Revelação. Antes da
vinda de Maomé (Muhammad), antes de
este receber a bênção de Deus, os profetas vieram trazer aos homens uma
mensagem divina. Javé é Deus, Alá é Deus. Só há um Deus e profetas. O Islão não veio
destruir, mas aperfeiçoar e completar. Não te surpreendas pois por encontrares
aqui símbolos estranhos à nossa lei. Também eles nos aproximam de Deus. Moisés
ensinou-nos que podíamos contemplar Deus cara a cara. Quando recebeu as tábuas
da Lei, no alto da montanha do Sinai, foi através de uma nuvem espessa que Javé
se lhe dirigiu. Os símbolos aproximam-nos de Deus, e só através destes reflexos
podemos aproximar-nos dele. Este pátio não passa de um reflexo longínquo do
paraíso a que Ele nos destina. Evocamo-lo, mas não o imitamos, pois Deus não admite
que nos associemos à sua obra de criação. Reflexo longínquo, afirmei, sim, pois
esse pátio que admiramos não passa, na realidade, do reflexo de um reflexo. Não percebes? Eu explico-te.
Aconselho-te a releres o Livro dos Reis
na Bíblia». In Louis Cardaillac, Tolède, XII-XIII, Éditions
Autrement, Paris, 1991, Toledo XII-XIII, Muçulmanos. Cristãos,
Judeus, O Saber e a Tolerância, Terramar, Lisboa, 1996, ISBN 972-710-144-5.
Cortesia de Terramar/JDACT