terça-feira, 12 de novembro de 2013

A Velha Casa. Vidas são Vidas. José Régio. «Basta! Eis uma obra aberta. Aberta aos problemas do nosso tempo, apta a renovar-se, alimentando-se do seu próprio sangue, a não morrer, como não morre a vida»


Cortesia de bernardomarques e jdact


Vidas são Vidas
«A convalescença de Pedro foi demorada. Chegara com os dois pulmões afectados. Os novos medicamentos que para o seu caso então se experimentavam, ainda não haviam provado suficientemente. Pelo menos, no entender do Dr. Laje. O Dr. Laje não era inclinado a novidades. Há tanto ano em Azurara, se em vários aspectos da sua personalidade sempre soubera defender uma quase feroz independência, pouco a pouco, e subtilmente, se deixara penetrar noutros de esse pendor provinciano para em tudo ir pelo seguro. Decerto o achariam atrasado, contaminado de espírito rotineiro, os jovens médicos da capital. Acabavam de se especializar lá fora, ou pelo menos, assinavam as mais modernas revistas da especialidade. Decerto o achariam atrasado, e alguma razão teriam. O que, porém, salvava o Dr. Laje, era não só a sua longa experiência, tão inteligentemente aproveitada, como o seu imperturbável bom senso. O repouso, a boa alimentação, a despreocupação, os ares puros, alguns fortificantes, eis no que principalmente esperava o nosso Dr. Laje para a cura de Pedro. Com a ajuda de Deus dizia Angelina há-de se curar. E o Dr. Laje: Com a ajuda da Madre Natureza!
De facto, na sua própria natureza parecia estar a melhor defesa de Pedro. Admirava o Dr. Laje como pudera um homem de tão robusta constituição, na força da vida, ter chegado ao miserável estado em que o trouxera Lelito. Entre os dois, Pedro e o Dr. Laje, se estabelecera quase desde logo aquela corrente afectiva que pode ser profunda, quando recíproca, entre um doente e o seu médico. Muito naturalmente, pois, se fora Pedro confiando ao seu novo amigo. Embora por episódios e fragmentos, aos poucos lhe dera conta de toda a sua vida. Uma breve infância familiar logo perturbada; aqueles belos anos do colégio, (para ele belos anos!) em que fora o mais amado e singular dos chefes, e eis os tempos felizes da vida de Pedro. Não tardara que a roda da Fortuna desandasse. A Morte e a Falência lhe vieram bater cedo à porta. O pai morreu novo, deixando a mulher e o filho desamparados. Dera-lhes uma vida fácil; mas nunca esperara morrer tão cedo, nem era homem para se preocupar demasiado com o futuro. Bem jovem, pois, se vira Pedro com o sustento da mãe a seu cargo, sem poder levar para diante os estudos iniciados. Não tinha aquele feitio calculista, ambicioso, acomodatício e ao mesmo tempo empreendedor, que a certos indivíduos eleva do nada à riqueza, à celebridade ou popularidade, às superiores camadas sociais e mundanas. Se julgara poder conquistar com relativa facilidade uma certa mediania decente, (e bem mais alto voavam os seus primeiros sonhos!) breve se desenganou; como já desses primeiros sonhos se desenganara.
Para explicador de estudantes, que foi o que primeiro tentou, estava mal preparado. Nunca chegara ele próprio a ser bom estudante. Numa vida de contínuas aflições prementes, impossível preparar-se agora melhor. Raros explicandos lhe apareciam. Os que lhe apareciam, eram geralmente dos que mal podem pagar. Os que pagavam, conseguidos por intermédio de antigos amigos categorizados, não demoravam muito a ver que lhes não seria difícil, pelo mesmo dinheiro, arranjar explicador mais competente. Baixara os preços; mas baixar os preços é depreciar a mercadoria. Conhecera várias formas de ser despedido. Já às primeiras palavras falsamente amáveis, mais ou menos constrangidas, acompanhadas de sorrisos amarelos e às vezes uma familiar pancadinha no ombro, no braço, compreendia que da mais vulgar maneira estavam dispensando os seus bons serviços. Também no jornalismo falhara. Ah, bem Pedro sabia que poderia dar um cronista original, um cintilante repórter! Com a sua fantasia, a sua vivacidade, o seu faro, o seu poder de observação (que passaria a cultivar), não iria longe? Mas ficara perto. Para se revelar e vencer, e para vencer não teria senão que se revelar, faltaram-lhe as necessárias oportunidades. Talvez, também, a persistência que muitas vezes acaba por se impor. Dificílima, aliás, tal persistência a quem vive sob a preocupação angustiosa da renda do cubículo, do pão de cada amanhã, dos remédios duma pobre mulher precocemente envelhecida, já condenada.
Além de tudo isto, redigia penosamente. Falando naturalmente bem, e até com invenção e brilho, sentia-se emperrado e tímido quando se punha a escrever. Teria de se apurar, de se treinar..., que vagar havia para treinos? Quando havia, era pior: estava desempregado. E então lhe faltava paciência e disposição de espírito. Demais, Pedro Sarapintado era por natureza inquieto, melindroso, volúvel. Qualquer afinidade tinha o seu temperamento com o dos artistas e boémios. Natural, pois, que se lembrasse dos seus talentos de actor, já revelados no colégio. Aos seus talentos de actor chegara também a recorrer. Que papéis conseguira? Os proventos que de aí lhe advinham, não lhe permitiriam esperar a hora da vitória. Não há dúvida, a urgência quotidiana de dinheiro é um grande embaraço para quem mal o ganha. Um círculo vicioso anda aqui subentendido, dentro do qual todo o movimento do indivíduo apanhado se reduz a rotação. Actividade, não faltava a Pedro. Seria bem orientada? Teria ele uma habilidade correspondente aos seus talentos? E alguma vez o tornara a favorecer a caprichosa Fortuna, alguma vez se arrependera de lhe ter voltado costas? Auxílio da parte dos camaradas, se tivera a ingenuidade de o esperar, logo se desiludira: Todos os actores operam juntos no teatro, e se dão a mão no palco; mas o que há entre esses pobres seres vaidosos, ciumentos, atormentados, cabotinos e ansiosos de publicidade, é uma luta mesquinhamente feroz. Isto foi, pelo menos, o que pareceu a Pedro... e sem ter ele a sorte de encontrar uma das inevitáveis excepções. (Tem de haver excepções!) pensava». In José Régio, A Velha Casa, Vidas são Vidas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 2003, ISBN 972-27-1258-6.

Cortesia de INCM/JDACT