A Longa Espera pelo Trono
Infância
«(…) Aquele que recebera nas sempre perenes vitórias contra os
muçulmanos a confirmação do apoio divino às suas ambições de se tornar rei do
território que alargava à custa da espada passava agora a tarefa ao seu próprio
eleito, àquele a quem ele achava digno e capaz de continuar a sua luta:
Filho, tu sabes bem quanto
trabalho eu houve no feito da guerra com os mouros e agora as treguas que eu
havia com el-rei Albrache sairam já e bem creio que ele e os mouros não estarão
quedos naquelas terras que eu ganhei [...] e. porende eu pensei o que se podia
fazer em este feito e a melhor coisa que em elo entendi é esta: que te mande eu
ala com todos meus poderes [...].
Mais adiante, ainda no mesmo passo, o rei justificaria as razões
porque, face à sua situação de saúde, que o impedia de combater devido ao
estado da sua perna e ainda por causa do juramento de não beligerância feito ao
rei leonês na sequência do revés de Badajoz, queria que o filho tomasse a
iniciativa militar e começasse a combater como o primeiro passo de uma real
posse do poder. Segundo a mesma fonte, as palavras do rei teriam sido:
[...] prazendo a Deus, de todo o
reino de Portugal tu hás-de ter encargo depois de meus dias, tão bem de reger como
de defensão. E, pois que te Deus deu corpo e manhas para o poderes fazer, que
agora o faças e começes.
Evidentemente que não podemos tomar nenhuma destas palavras como tendo
sido alguma vez pronunciada de facto. Todo este diálogo só pode ser atribuído à
exclusiva responsabilidade da imaginação do cronista que o escreveu. O redactor
de Crónica
de 1419 fora, como tantos outros cronistas medievais, encarregue de
escrever os feitos dos primeiros reis de Portugal, muito depois de os seus
reinados terem tido lugar, a demasiada distância dos acontecimentos para poder
sequer estar e recolher tradições orais. Não sabemos quase nada das fontes utilizadas
pelo cronista, sendo que em nenhuma das anteriores crónicas ou registos analíticos
que conhecemos se recolhe qualquer passagem comparável com a que o autor da Crónica
de 1419 aí compilou. No entanto, não devemos diminuir o papel que este
tipo de episódios desempenham no desenrolar das narrativas cronistas medievais,
lugares-comuns a que os narradores recorrem com alguma frequência para colorir
momentos que funcionem como núcleos-chave explicativos da dinâmica dessa mesma
narrativa.
Com efeito, a própria crónica peninsular dos séculos XIII e XIV já nos
fornece um interessante modelo de um excurso muito perecido com este, no
famosíssimo episódio no qual o conde Henrique, às portas da morte, em Astorga,
teria chamado o seu único filho legítimo varão, Afonso Henriques, para lhe dar
paternais e sábios conselhos sobre a correcta forma de governar o reino e os súbditos
que estava prestes a herdar, e para o guiar na forma justa de o fazer. Mais uma
vez, esta transmissão do poder, directamente do seu anterior detentor para o
seu sucessor, parece funcionar sobretudo como uma estratégia de legitimação de
uma sucessão que se quer garantir. Já vários autores realçaram a impossibilidade
da realidade desse encontro entre o conde Henrique e Afonso Henriques em Astorga,
à morte do conde Henrique, seu filho teria na melhor das hipóteses 3 anos de
idade, bem como a falta de correspondência entre as intenções definidas nesse
trecho da crónica e o real rumo que os acontecimentos tomaram imediatamente a
seguir, com D. Teresa à frente do condado e mais de dezasseis anos a decorrerem
entre a morte do conde Henrique e a tomada do poder pelo seu filho Afonso
Henriques, em 1128. Mas, nesse
episódio como em outros de idêntica natureza, a fidelidade aos acontecimentos
não era tão importante quanto as intenções da sua inclusão na narrativa como
veículo promotor de determinadas reacções junto daqueles para quem a mensagem
se dirigia.
No caso vertente, e regressando ao nosso contexto, tratava-se de
evidenciar a justeza da transmissão do poder pelo experimentado e ainda
voluntarioso Afonso Henriques ao seu jovem e esforçado filho Sancho, ansioso
por entrar em acção, para que não restassem dúvidas nas mentes dos eventuais
leitores do século XV de que o futuro monarca agira em tudo por delegação do
pai, como convém a um filho obediente e virtuoso. Os detalhes da própria
preparação da batalha, os pormenores da véspera do confronto, também nos são
dados na mesma linha discursiva: o inexperiente
Sancho deixara tudo nas mãos dos garbosos e fiéis nobres que o acompanhavam». In
Maria João Violante Branco, Sancho I, O Filho do Fundador, Temas e Debates,
Livraria Bertrand, 2009, ISBN 978-972-759-978-3.