sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Sancho I. O Filho do Fundador. Maria J. Violante Branco. «… a impossibilidade da realidade desse encontro entre o conde Henrique e Afonso Henriques em Astorga, à morte do conde Henrique, seu filho teria na melhor das hipóteses 3 anos de idade…»

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A Longa Espera pelo Trono
Infância
«(…) Aquele que recebera nas sempre perenes vitórias contra os muçulmanos a confirmação do apoio divino às suas ambições de se tornar rei do território que alargava à custa da espada passava agora a tarefa ao seu próprio eleito, àquele a quem ele achava digno e capaz de continuar a sua luta:

Filho, tu sabes bem quanto trabalho eu houve no feito da guerra com os mouros e agora as treguas que eu havia com el-rei Albrache sairam já e bem creio que ele e os mouros não estarão quedos naquelas terras que eu ganhei [...] e. porende eu pensei o que se podia fazer em este feito e a melhor coisa que em elo entendi é esta: que te mande eu ala com todos meus poderes [...].

Mais adiante, ainda no mesmo passo, o rei justificaria as razões porque, face à sua situação de saúde, que o impedia de combater devido ao estado da sua perna e ainda por causa do juramento de não beligerância feito ao rei leonês na sequência do revés de Badajoz, queria que o filho tomasse a iniciativa militar e começasse a combater como o primeiro passo de uma real posse do poder. Segundo a mesma fonte, as palavras do rei teriam sido:

[...] prazendo a Deus, de todo o reino de Portugal tu hás-de ter encargo depois de meus dias, tão bem de reger como de defensão. E, pois que te Deus deu corpo e manhas para o poderes fazer, que agora o faças e começes.

Evidentemente que não podemos tomar nenhuma destas palavras como tendo sido alguma vez pronunciada de facto. Todo este diálogo só pode ser atribuído à exclusiva responsabilidade da imaginação do cronista que o escreveu. O redactor de Crónica de 1419 fora, como tantos outros cronistas medievais, encarregue de escrever os feitos dos primeiros reis de Portugal, muito depois de os seus reinados terem tido lugar, a demasiada distância dos acontecimentos para poder sequer estar e recolher tradições orais. Não sabemos quase nada das fontes utilizadas pelo cronista, sendo que em nenhuma das anteriores crónicas ou registos analíticos que conhecemos se recolhe qualquer passagem comparável com a que o autor da Crónica de 1419 aí compilou. No entanto, não devemos diminuir o papel que este tipo de episódios desempenham no desenrolar das narrativas cronistas medievais, lugares-comuns a que os narradores recorrem com alguma frequência para colorir momentos que funcionem como núcleos-chave explicativos da dinâmica dessa mesma narrativa.
Com efeito, a própria crónica peninsular dos séculos XIII e XIV já nos fornece um interessante modelo de um excurso muito perecido com este, no famosíssimo episódio no qual o conde Henrique, às portas da morte, em Astorga, teria chamado o seu único filho legítimo varão, Afonso Henriques, para lhe dar paternais e sábios conselhos sobre a correcta forma de governar o reino e os súbditos que estava prestes a herdar, e para o guiar na forma justa de o fazer. Mais uma vez, esta transmissão do poder, directamente do seu anterior detentor para o seu sucessor, parece funcionar sobretudo como uma estratégia de legitimação de uma sucessão que se quer garantir. Já vários autores realçaram a impossibilidade da realidade desse encontro entre o conde Henrique e Afonso Henriques em Astorga, à morte do conde Henrique, seu filho teria na melhor das hipóteses 3 anos de idade, bem como a falta de correspondência entre as intenções definidas nesse trecho da crónica e o real rumo que os acontecimentos tomaram imediatamente a seguir, com D. Teresa à frente do condado e mais de dezasseis anos a decorrerem entre a morte do conde Henrique e a tomada do poder pelo seu filho Afonso Henriques, em 1128. Mas, nesse episódio como em outros de idêntica natureza, a fidelidade aos acontecimentos não era tão importante quanto as intenções da sua inclusão na narrativa como veículo promotor de determinadas reacções junto daqueles para quem a mensagem se dirigia.
No caso vertente, e regressando ao nosso contexto, tratava-se de evidenciar a justeza da transmissão do poder pelo experimentado e ainda voluntarioso Afonso Henriques ao seu jovem e esforçado filho Sancho, ansioso por entrar em acção, para que não restassem dúvidas nas mentes dos eventuais leitores do século XV de que o futuro monarca agira em tudo por delegação do pai, como convém a um filho obediente e virtuoso. Os detalhes da própria preparação da batalha, os pormenores da véspera do confronto, também nos são dados na mesma linha discursiva: o inexperiente Sancho deixara tudo nas mãos dos garbosos e fiéis nobres que o acompanhavam». In Maria João Violante Branco, Sancho I, O Filho do Fundador, Temas e Debates, Livraria Bertrand, 2009, ISBN 978-972-759-978-3.


Cortesia de Bertrand/JDACT