A Longa Espera pelo Trono
Infância
«(…) Falando, na véspera do recontro, para os seus chefes militares que
lhe pediam ordens, tinha-se limitado a
pedir-lhes que fizessem como estavam habituados a fazer quando seu pai os
liderava, pois eles saberiam muito melhor que ele próprio como preparar e
ordenar as hostes:
E de eu a vós outros, amigos,
dizer como cada um há-de fazer, isto é a mim escusado, que vós tanto sabeis disto
que o ouvestes já tão em uso com meu padre que eu não ei que dizer mais senão
tanto que ponhais em vossos corações d’acrescentardes a lei de Deus porque
batalhais […] e asim vindes por serviço de meu padre e por honra minha e vossa.
A adesão dos seus nobres é imediata:
Senhor nós todos somos vossos e por
vosso serviço faremos em este feito quanto vos podereis ver, em guisa que, com
ajuda de Deus, vós ganharedes honrra para vós e para nós.
Pouco importa se estamos a lidar com uma versão mais ou menos ficcional
do acontecimento. Na verdade, neste caso os diálogos são reveladores de tensões
que podemos identificar e comprovar documentalmente com elementos mais seguros
que os transmitidos pela crónica quatrocentista. A necessidade de evidenciar as
suas qualidades de guerreiro, de demonstrar como merecia o reino que deveria
herdar à morte do pai, era decerto muito premente. Por isso o tamanho da sanha
que na guerra queria demonstrar, da sede de afirmação que o pressionava e que
viria a revelar na sua investida destemperada, no dia do recontro, ao entrar pelo
meio das forças dos primeiros mouros que, bem dentro do território inimigo, defrontava de forma
agónica, cheia de juvenil entusiasmo e reconhecidamente inconsciente no seu
ímpeto, exactamente como convinha a qualquer guerreiro que se prezasse, como
recomendavam todos os códigos de ética cavaleiresca. Exibindo de forma
espalhafatosa o conveniente desprezo e desapego pela vida que deveria caracterizar
qualquer eleito, mas de forma tão arriscada que obrigara, como vimos, todos os
melhores dos seus nobres guerreiros a desfazerem a estratégia combinada na
véspera para acorrerem em auxílio da ala comandada pelo infante, por medo de o
perderem.
Mais um recurso retórico, utilizado pelo redactor da Crónica
de 1419, sem dúvida, e mais uma vez com sabedoria, de forma a fazer-nos
preocupar pela sorte do rei e de todos os seus homens, apenas para logo de
seguida nos reassegurar do vigor e capacidade deste jovem guerreiro para a
tarefa que se lhe impunha, e para nos anunciar o nascimento de um novo
rei, cuja aptidão bélica era equivalente à do seu progenitor e que, afinal,
embora parecesse estar em dificuldades, apenas estava a demonstrar a sua
valentia, na audácia e desprendimento da vida que deveriam qualificar qualquer
um nas suas condições. A virtude e justeza do futuro rei, desde então à frente
dos exércitos régios, tornar-se-ia ainda mais evidente e seria ainda acrescentada
quando o cronista aduz que, após derrotar e desbaratar os inimigos de forma
brilhante e gloriosa, o jovem Sancho teria decidido deixar
os espólios de guerra e o saque aos seus homens, sem sequer querer
comparticipar deles. Para além de prodigioso guerreiro e temente a Deus, em
cujas mãos confiava a sorte de luta que travava, Sancho revelava-se ainda
desapegado dos bens materiais, generoso e magnânimo, senhor e exemplo de quase
todas as qualidades que deviam ornar qualquer monarca que quisesse honrar a
dignidade de que era investido.
Mas afinal, a que correspondia, na realidade, esta imagem de Sancho
I, que o cronista do século XV nos quis transmitir tão dourada, solar e
gloriosa, a imagem desse filho obediente e valoroso, ansioso por merecer ser o
sucessor do seu pai e demonstrando à saciedade e competência que o assistia nessa ambição? Este homem, que,
de acordo com a fonte que temos estado a seguir, acabava de superar a sua
primeira prova de fogo com fulgor e brilhantismo, seria ele tão inexperiente e
tão ingénuo como o narrador nos quer
fazer crer? O que nos dizem os elementos constantes, por um lado, das
narrativas mais próximas dos acontecimentos, e por outro, da documentação da
época?» In Maria João Violante Branco, Sancho I, O Filho do Fundador, Temas e
Debates, Livraria Bertrand, 2009, ISBN 978-972-759-978-3.
Cortesia de Bertrand/JDACT