quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Luandino Vieira. O Mineiro Angolano da Memória. Adriana Mello Guimarães. «Aos onze anos, eu tinha um jornalzinho manuscrito, e neste jornal eu era o redactor e era o tipógrafo: a minha caligrafia é que constituía o tipo. Eu fazia também uns desenhos para ilustrar as crónicas de futebol…»


Cortesia de wikipedia

Pode-se assim dizer que do tempo nada se perde porque o passado é presente no presente; ou melhor, o presente não é senão o passado agindo. In Farias de Brito, O mundo interior.

«Quais são os sentimentos, valores e aspirações que emergem quando nos voltamos sobre o nosso vivido mais remoto? Experiência comum aos indivíduos da espécie humana, a vivência da infância só se tornou tema literário com a modernidade. Em À la recherche du temps perdu, como sabemos, o tema foi celebrizado por Proust. Em língua portuguesa, não são poucos os escritores que esse caminho percorreram. Por exemplo, António Nobre assume a memória sob a forma do lirismo: Mas, hoje, as pombas de oiro, aves da minha infância, / que me enchiam de Lua o coração, outrora, / partiram e no Céu evolam-se, à distância!. Há várias possibilidades de trabalhar o tema. Casimiro Abreu, expressão do romantismo brasileiro, fala da dor inerente à consciência da transitoriedade e da finitude: Oh! Que saudades que tenho / da aurora da minha vida / da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais!. Mais recentemente, Dante Milano fala do próprio tempo interno da consciência: Tempo, vais para trás ou para diante? / O passado carrega a minha vida/ Para trás e eu de mim fiquei distante, / ou existir é uma contínua ida / e eu me persigo nunca me alcançando? / A hora da despedida é a da partida.
Cumpre entender, como Agostinho e outros filósofos depois dele, e a exemplo de Bergson e de Husserl, que o tempo da consciência é um fluxo contínuo, uma correnteza em que pulsam simultaneamente o que foi, o que é e o que está vindo a ser. Daí o sentido da memória como modo de presença do que não mais existe; de coisas e de factos vividos que, embora pertencentes ao passado, fazem parte (tanto quanto o fazem as coisas e factos previstos, sonhados, planeados ou apenas imaginados, e que ainda não existem) do mundo real que experimentamos actualmente. Neste sentido, e considerando o contexto da colonização angolana, pretendemos descortinar a vivência da infância de Luandino Vieira, expressa nos contos de A cidade e a infância, nas estórias de Luuanda e no romance João Vêncio: os seus amores, como sendo a fonte e o verdadeiro motor de sua criação literária.

A memória como filão

Tenho minhas minas para garimpar. In Luandino

Numa entrevista ao jornal O Globo (17.11.2007), do Rio de Janeiro, Luandino Vieira afirmou que escrever sobre as barreiras de classes e as injustiças é uma opção comprometida com a sua própria vida, pois essas preocupações constituem uma espécie de aquário onde nadam as minhas memórias. Luandino definiu a si mesmo como um escritor que encontrou na memória o seu filão, a sua mina; uma espécie de mineiro do tempo interno da consciência:

Minha ficção sempre se alimentou da memória. É do que se inscreveu na memória que retiro o material que submeto a todos os maus-tratos possíveis até perceber se é válido para justificar meu trabalho sobre ele. Da actualidade conheço pouco. Mas revela-se-me permanente e com persistência o que em minhas memórias de mais de meio século se inscreveu, e não apaga. Tenho minhas minas para garimpar.

Cabe, então, perceber melhor quais são estas memórias no percurso da vida de José Vieira Mateus Graça, conhecido por Luandino Vieira. Em outra entrevista, ainda no Rio de Janeiro, ele explicou que o pseudónimo exprime o que foi a progressiva incorporação do seu ser no lugar:

Aos onze anos, eu tinha um jornalzinho manuscrito, e neste jornal eu era o redactor e era o tipógrafo: a minha caligrafia é que constituía o tipo. Eu fazia também uns desenhos para ilustrar as crónicas de futebol, e nestes desenhos eu assinava como Luandino. E também, porque me chamavam de Luandino, devido a minha mania de defender a cidade de Luanda acima de tudo.

De família pobre, Luandino nasceu em Portugal, a 4 de Maio de 1935. Três anos depois, a família foi viver para Angola, colónia portuguesa, onde ele passou a infância e a adolescência». In Adriana Mello Guimarães, Luandino Vieira, O Mineiro Angolano da Memória, Artigos e Ensaios, Revista Crioula, nº 3, 2008.

Cortesia de Revista Crioula/JDACT