quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Pedro, Inês e a Fonte dos Amores. Carolina Michaelis de Vasconcelos. «Um texto concebido no âmbito da Renascença Portuguesa. O resultado é uma interpretação comparada da ideia de Saudade com outras análogas variantes das línguas europeias…»

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Pedro, Inês e a Fonte dos Amores
«Notas críticas soltas, sobre esse assunto, já quase exaustivamente tratado por penas primorosas, eis o que vai constituir a minha contribuição ao monumento literário erigido pelos melhores Camonistas de hoje, a fim de celebrar o … Centenário de Luís de Camões. Notas críticas sobre a tragédia de amor, suave e feroz, pela qual melhor do que por nenhuma outra se documenta perante o mundo inteiro, o temperamento, a psique da nação de apaixonados que, segundo fama várias vezes secular, se mantém de amor, morre de amor, ou mata delirando amorosamente. Notas críticas soltas que eu, de mais a mais, já anteriormente espalhei em escritos meus. Mas como não fossem aproveitadas nos trechos de história postos em arte por Antero de Figueiredo no Grande Desvairo nem na Iconografia dos Túmulos de Alcobaça, de M. Vieira Natividade, nem tão pouco no belo estudo que Reinaldo Santos publicou na Lusitânia sobre o mesmo tema, reúno-as num feixe para, com ele na mão, me incorporar no cortejo organizado em honra do excelso Poeta que fez da Vida, da Morte, e da Memória de Inês de Castro o episódio mais terno e delicado d'Os Lusíadas tornando lendárias e mundiais as histórias da Fonte das Lágrimas e da Degolação.

NOTA: Os Lusíadas, III, oitavas 118-135. As palavras do Poeta que afirma que os matadores banharam as espadas no colo de Inês e no seu seio, as brancas flores que ela dos olhos seus regadas tinha, deram margem, de resto, a controvérsias. Sem cepo. Antero de Figueiredo é o único escritor que fala dum cepo armado ad hoc no pátio do Paço de Santa Clara.

Mas seria realmente degolada Inês? Ou foi apunhalada? Foi o algoz como executor oficial das Justiças de el-rei que com o seu cutelo separou do colo de alabastro a linda cabeça de cabelos ruivos e olhos verdes? Ou foi o peito de Inês trespassado pelas espadas (estoques) dos três ministros e privados de Afonso o Bravo, cujos bárbaros corações o vingador apontou e castigou também barbaramente, alguns anos depois, à moda da Idade Média como verdadeiros matadores da amada? A lenda, a poesia portanto, que de há tanto tornou internacional de nacional o caso triste e digno de memória assenta o segundo processo. A historiografia coeva, pelo contrário, simples relatadora de factos ainda não feitos arte ou estilizados, atesta o segundo (em lugar de espadadas alguns autores tardios empregam estocadas). Rui de Pina, o cronista oficial e o compilador Acenheiro, algo posterior, empregam exclusivamente termos vagos e gerais como morte e matar. Mataram-na. O rei mandou matá-la.
A Crónica de D. Afonso IV fonte de ambos, perdeu-se. Há todavia partes do relato dela no Capítulo 27 da Crónica de D. Pedro: Como el-rei Pedro de Portugal disse por D. Enes que fôra sua mulher. - Aí diz: … já tendes ouvido compridamente onde falamos da morte de D. Enes a razão porque a el-rei Afonso matou e o grande desvairo que entre ela e este rei Pedro, sendo então infante, ouve por este aso.
Restam também, na Crónica de D. João I, os importantes capítulos relativos àquelas Cortes em que João das Regras expôs a sua nenhuma fé no juramento e no casamento de Pedro com Inês. Neles não se encontram senão os mesmos termos vagos (matar e morte). Nos dizeres latinos do Breve Cronicon Alcobacense, corresponde igualmente a matou o sinónimo occidit (matar não provém de mactare, como rematar e arrematar provém do árabe mate morto, usado sobretudo no jogo do xadrez. Xeque mate significa o rei está morto): Era N.º CCC.o LWX.a III.o, VII dies Januari occidit rex alfonsus dominam agnetem Colimbrie. Nos antigos Livros de Linhagens, acrescentados até o fim da primeira dinastia, Inês não surge senão como a que matou el Rei Affonso. A mesma fórmula emprega o Castelhano Pero Lopez Ayala (1332-1407) na sua Cronica de Pedro el Cruel, falando verdade, mas não a dizendo toda, encobrindo-a pelo contrário com estilização ou idealização discreta.
Dois depoimentos de testemunhos há todavia, quase coevos dos factos e independentes um do outro, em que às claras se fala de degolação. E segundo a sentença proverbial, dois testemunhos são suficientes para autenticar qualquer facto. Durch Zweier Zeugen Mund alle Wahrheit kund. Um desses testemunhos foi lavrado, como de costume, pela pena de um cronista; o outro pelo escopro de um estatuário. O primeiro está num pergaminho de Santa Cruz de Coimbra: no chamado Livro da Noa, em cujos registos sucessivos e assaz desordenados, figura no fim a nótula seguinte: … era MCCC nonagesima tertia VII dies januarii decolata fuit Dona Ines per mandatum domini, Afonsi IIII. A arte plástica confirma este veredicto, pelo menos na leitura comum. É no calcário fino dos túmulos alcobacenses, essa maior maravilha de arte que em Portugal se produziu no século XIV e ainda hoje encanta olhos que sabem ver, apesar de corroída pela acção do tempo e destroçada pelo vandalismo da soldadesca do general Erlon em 1810, é nesse calcário fino de um dos túmulos alcobacenses que se lê como numa Bíblia Pauperum a cena da degolação. Onde? Numa das pétalas da rosácea que (fora do comum em todos os sentidos) guarnece o lado da cabeceira no sarcófago de Pedro. Fora do comum, porque em dezoito quadrinhos profanos, seis no círculo interior, doze no exterior, o artista tentou representar cenas íntimas da vida real e da morte de Inês». In Carolina Michaelis de Vasconcelos, Artigo publicado na Revista Lusitânia, volume II, compilado em Dispersos, Originais Portugueses, I Vária (1º volume), Lisboa, Edições Ocidente, 1969.

Cortesia de E. Ocidente/JDACT