«Todos sabemos que, para os reis cristãos da Idade Média, por mais
pecadores e violentos que fossem, a religião fazia parte da sua vida e eles não
tinham vergonha de a manifestar em público. Não precisavam de se declarar católicos
quando andavam pelo reino, em corte aberta, a administrar justiça, a passar
correição às suas gentes ou a fazer inquirições sobre os seus reguengos. A Idade
Média era tempo de muitas carências ao nível da vida real e de muito atraso
cultural; a ciência médica ainda não conseguira resolver banais problemas de
saúde ou vencer doenças mais ou menos naturais. Por isso, Deus e os seus
Santos, mesmo para os reis, eram sempre o recurso mais imediato e os grandes
protectores para os males do corpo e do espírito. Afinal, os reis também
sentiam a sua fraqueza natural e, por isso, não deixavam de rezar por si e
pelos seus. Para isso faziam peregrinações à Tera Santa, a Santiago de
Compostela e a outros lugares santos espalhados pela cristandade. Dentro dos
seus reinos, não raras vezes, aproveitavam as suas viagens de governação para
visitar os santuários mais famosos e invocar os santos mediadores, que a devoção
do seu povo sentia próximos e chegados ao mundo dos homens, particulares
advogados para coisas ruins e males desconhecidos. Na doença e nos infortúnios da
vida, todos os mortais eram iguais. Não foi assim que Afonso Henriques, o pai
da pátria portuguesa, foi levado por Egas Moniz em peregrinação à ermida de
Santa Maria de Cárquere, Resende, onde foi
salvo, por milagre de Nossa Senhora, do aleijão com que nasceu? Ora, tal
pai, tal filho. Que admira, que também seu filho, Sancho I, lhe seguisse o
exemplo, quando a desgraça lhe bateu à porta e pôs seu filho, futuro Afonso II,
o Gordo, em grave perigo de vida?
Foi exactamente isso que aconteceu, naquele distante 29 de Maio de
1200, conforme reza a pública-forma duma carta de couto passada em Braga pelo
tabelião João Fortes, a 10/XII/1278, transcrita depois no Liber Fidei da Sé de Braga
e a cujo conteúdo faz referência frei António Brandão na Monarquia Lusitana, parte IV, Livro 12, capítulo 27. Andava o
rei em visita pelas úberes mas ermadas terras de Basto, então chefiadas pelo
nobre Gonçalo Mendes, da nobre linhagem dos Sousões. Tinha visitado e pousado,
com certeza, no célebre mosteiro beneditino de S. Miguel de Refojos de Basto e,
ali, teria exposto aos monges a sua apreensão e desolação, face a uma esquisita
doença (lepra?) de seu filho e herdeiro, que viria a ser o nosso rei
Afonso II, o Gordo (1185-1223).
Nessa altura o príncipe herdeiro teria cinco anos de idade. Aos monges teria, então,
o aflito e preocupado progenitor ouvido falar da poderosa intercessão e dos extraordinários
milagres de Santa Senhorinha. A igreja da Santa era ali bem pertinho e os
religiosos, qua assistiam espiritualmente a igreja da Santa, para lá
encaminharam o atribulado pai e impotente rei.
Conforme o próprio monarca narra, em estilo directo, na primeira
pessoa, lá se dirigiu a fim de rezar, causa
orationis, junto do túmulo da gloriosa Virgem, Santa Senhorinha. Não teve
respeitos humanos e, diante dos presentes, com gemidos e suspiros, gemitibus et suspiriis, impetrou a saúde
para seu filho Afonso, fazendo a promessa de criar à volta da igreja um couto
de protecção, que ele próprio percorreu a pé, mandando que Gonçalo Mendes,
senhor da terra, levantasse as pedras de coutação. O documento é autêntico e
vem reproduzido entre os documentos de Sancho I». In Geraldo Coelho Dias, D. Sancho
I, Peregrino e devoto de Santa Senhorinha de Basto, Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, Revista da Faculdade de Letras, II Série, Vol. XIII,
Porto, 1996.
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