domingo, 24 de novembro de 2013

Narração da Inquisição de Goa. Charles Dellon. «Se bem que haja vinha na ilha Delfina, não a sabem cultivar seus habitantes, nem da uva conhecem as boas qualidades; a sua comum bebida é a água, e nas festas públicas bebem hidromel, que muito bem o fabricam»


jdact

Da ilha Delfina, ou de S. Lourenço
«(…) Os franceses ali se estabeleceram desde há muito; mudaram mui amiúde o arraial povoado, até que alfim o principal foi fixado ao pé do promontório de Ditapere, junto às funduras duma enseada que chamaram de Angra Delfina, e à fortaleza que lá edificaram também deram o nome de Forte Delfim. Não é ruim este porto, e poucos são os ventos que ali hão-de estorvar as naus; porém de boa guarda deve pôr-se quem lá quiser entrar, que não fique debaixo de ventania, pois tão custoso é voltar a alcançá-lo, que muito amiúde se levam meses para botar remendo ao descuido duma hora. A nossa nação fizera ainda colónias em vários outros sítios de S. Lourenço, como em Galamboule, na ilha de Santa Maria, e na baía de Antongil, que é uma das mais formosas em todo o Oceano; tendo porém a Companhia das Índias ajuizado serem as ditas colónias coisa sem préstimo e ademais nocivas ao seu comércio, desamparou-as desde há muito.
Em vista da Delfina Fortaleza que foi usual morada dos governadores e depois dos vice-reis, só uma casa de pedra fora levantada. É, toda a ilha de Madagáscar mui povoada e fértil, abundante em gado e abelhas; são de cor vária os habitantes, sendo ainda assim a maioria negros; porém há-os quase tão brancos como os europeus. Não conhecem civilidade alguma nem cerimónias, tirante os que moram nos litorais da banda norte da ilha, que possuem do maometismo uns parcos laivos, pois todos os mais de religião nem sombras conhecem. São gente ufana e fera, cruéis, libertinos, vingativos, tanto que nem exprimir se pode, ladrões e sem palavra. Vezes sem conta sofreram os nossos franceses quão arriscado era fitarem-se-lhes nas promessas; e as traições amiudadas alfim os desenganaram e os resolveram a largar de todo desta ilha, cujos habitantes são os mais infiéis do mundo. Primeiramente se julgara ser possível dar ali certo fruto ao espiritual, assim se esperando que as instruções da fé cristã amansassem o humor feroz e intratável que os faz incapazes de vida em sociedade; mas o zelo dos nossos missionários em vão se viu esgotado, e jamais se notou que hajam os naturais aproveitado dos cuidados postos a instruí-los; pois não só os adultos tornavam aos seus desmanchos, mal saíam da companhia dos franceses, mas até aqueles que haviam sido criados com a mais especial aplicação dos seminários, mal deixando os nossos padres, em crescendo, logo tornavam a viver entre os seus na mesma libertinagem, como se nunca tivessem ouvido falar do cristianismo.
O comum sustento destes povos é o arroz, e assim também raízes de vária espécie; colhem também ervilhas e favas, diferentes porém das da Europa; também têm muita fruta, e são gente de grande apetite; mas em tempo de penúria admiravelmente suportam a fome. Se bem que haja vinha na ilha Delfina, não a sabem cultivar seus habitantes, nem da uva conhecem as boas qualidades; a sua comum bebida é a água, e nas festas públicas bebem hidromel, que muito bem o fabricam, e tão forte que embriaga como o nosso vinho. A usual ocupação destes ilhéus é a guerra, que movem uns aos outros a bem dizer continuamente; em tempo de paz apascentam os rebanhos, ou dedicam-se à pesca; toda a ilha está banhada por uma infinidade de rios, onde não falta peixe. Singulares são os bois desta ilha, que têm no lombo uma espécie de lúpia, amiúde tão grande como duas vezes o tamanho da própria cabeça; alguns vi eu de cujo quisto houve quem tirasse obra de trinta libras de banha derretida; visto ninguém fazer manteiga nesta ilha, a dita banha faz-lhe as vezes, e os franceses, semelhando os negros, não mostravam escrúpulo nenhum ao servirem-se dela para os molhos, e até durante a Quaresma.
Nas partes costeiras de Lambregis, por elas adiante, os cerdos são gulosos do precioso betume que por lá há, e os naturais, que não ignoram de todo as boas qualidades, com mil cuidados andam à cata dele, e fumam-no com o tabaco; não obstante, quando topam estrangeiros que o queiram comprar, de boa mente o trocam por pulseiras, coralinas ou panos pintados, que são as coisas que mais estimam; não fazem caso, no geral, de ouro ou prata, e há sítios até em que se interessam mais por estanho ou cobre do que por aqueles dois metais, por mor dos quais as nações da Europa tanta avidez e tanto zelo mostram». In Charles Dellon (1649-1709?), Relation de L’Inquisition de Goa, 1687, Leyden, Holanda, Narração da Inquisição de Goa, tradução e notas de Miguel Vicente Abreu (1827-1883), Nova Goa, 1866, Edições Antígona, Lisboa, 1996, ISBN 972-608-075-4.

Cortesia de E. Antígona/JDACT