«(…) Primeiro veio Lica com Hegde
e o guarda que o acompanhava. A seguir, o Keni e o Camotim. Ouvira muitas vezes
o nome de Priti Camotim, este rapaz
alto e simpático que Lica muito
estimava e considerava quase como um irmão, mas ainda não o tinha conhecido.
Priti chegara de Coimbra, onde estudara Direito, e, como os outros goeses,
também estava emocionalmente envolvido com o movimento de libertação.
Depois dos aperitivos fomos para a sala de jantar e sentámo-nos à mesa, nos
lugares indicados. Ao lado tínhamos colocado, não muito longe de Rama, uma mesa
de chá com um lugar para o guarda. Começou a servir-se o almoço. Quando chegou a
altura de trazer para a mesa o caril, comecei a ficar muito apreensiva e mal
podia concentrar-me noutra coisa. Lica
devia ter tomado em consideração a minha ansiedade, pois, mal tinha levado à
boca a primeira garfada, voltou-se para mim e disse: Está muito bom. Até suspirei de alívio! Mas logo, do outro
lado da mesa, Rama acrescentou: Está
mesmo delicioso. O que é?
O dia da nossa partida aproximava-se rapidamente e eu começava a ficar inquieta,
com pensamentos confusos de ansiedade e de excitação sobre o nosso futuro.
Estava de partida uma vez mais, mas agora, quem
poderia sabê-lo? - talvez para sempre. A Índia ficava tão longe e os
meios de transporte então existentes tornavam essa distância ainda maior. Partimos
para a Índia em Novembro de 1948. Aquele
país tinha-se libertado do jugo britânico havia apenas um ano e emergia agora
uma nova Índia, vibrante e cheia de esperança num futuro brilhante. Começava
também a tentar sacudir do seu solo os últimos colonizadores: França e
Portugal.
A estação do Rossio estava apinhada de gente. Alguns dos nossos amigos
já lá se encontravam quando chegámos. Havia carregadores com carretas cheias de
malas por toda a parte. Os meus pais não conseguiam esconder a tristeza. Alguns
dias antes tínhamos lido um livro que narrava a triste história de uma rapariga
que casara com um jovem forasteiro de terra distante. Nas cartas para a mãe ela
tentava esconder a infelicidade e a vida dura que levava na terra do marido com
histórias inventadas de sonhos e fantasias. Escrevia então: Mamã,
isto é tão lindo que até as maçãs do nosso pomar são enormes e de cor muito,
muito azul! Durante algum tempo a minha mãe acabava sempre as longas
cartas que me escrevia com a mesma pergunta: Diz-me, filha, as maçãs do teu
pomar são mesmo tão azuis?
A pouco e pouco o comboio começou a andar, deixando lentamente a plataforma,
com todos a acenarem um último adeus de despedida. Não pude mais esconder as
lágrimas e, mal entrámos no túnel do Rossio, sentei-me desfalecida, com
uma grande angústia a apertar-me o coração e banhada em lágrimas. Acordei sobressaltada.
O comboio tinha parado numa pequena estação. Olhei para fora; estávamos ainda
em Espanha. A manhã já ia avançada e começava a ouvir Lica no cubículo adjacente, que era a casa de banho. Ouvia-se o
ruído do chapinhar de água na bacia. A nossa vida, como marido e mulher, tinha
apenas começado e à nossa frente abria-se agora um vasto mundo cheio de sonhos.
Nos últimos anos, Lica andara cada
vez mais inquieto em relação aos problemas da Índia. Alguns meses antes tinha
sofrido um grande choque: Gandhi fora assassinado. Desde então, o
impulso e grande desejo de voltar para o seu país aumentava de dia para dia. Após
a independência da Índia sentiu se desiludido com a situação de Goa.
O primeiro congresso para a independência da Índia tinha se reunido em Belgão,
perto de Goa, mas todo o subcontinente estava agora livre, excepto Goa
e uns pequenos territórios que a França ainda segurava. Depois do fim do
chamado British Raj, Salazar mudou, de uma penada, o nome de colónias
para províncias ultramarinas, transformando, assim, qualquer futuro
problema internacional em assunto interno.
A partir dessa altura, Goa passou a ser considerada parte
integrante de Portugal, com o lema Aqui também é Portugal. Este
gesto infantil, fez-me lembrar a história do Sadhu (santo
indiano), que, para fazer parar o avanço do exército inimigo, mandou
estender, atravessado no caminho, o dhoti amarelo-açafrão dos Sadhus
para barrar a passagem. Estava convencido de que ninguém teria a coragem de
pisar aquele pano sagrado…» In Edila Gaitonde, As Maçãs Azuis. Portugal
e Goa 1948 – 1961, Editorial Tágide, F. Oriente, 2011, ISBN 978-989-95179-9-8.
Cortesia de E. Tágide/JDACT