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Torre
de Londres. Maio de 1588
«(…) Devemos destruí-la. Ela deve
ser aniquilada. E o meu padrinho, o rei Filipe, garantirá isso. No meio da
penumbra os olhos do padre brilharam. E a quem devemos dedicar a missa?,
perguntou. Ao sucesso da Armada!, disse Philip. Que ela nos vingue desta nação
de infiéis! Ao sucesso da Armada!, bradaram os demais. O padre começou a paramentar-se,
separou uma chávena de cerâmica para usar como cálice, um prato de madeira como
base, um lenço como estola. Rezemos, disse para iniciar a oração. Ó Altíssimo,
vistes com piedade a blasfémia e o sacrilégio na Inglaterra, antes uma serva obediente,
agora renegada. Como antigamente, quando uma nação se corrompia perante falsos
deuses, vós os castigáveis com a vara, agora enviais o vosso filho, o rei Filipe
da Espanha, um devoto da verdadeira fé, para puni-los. Assim como não houve
misericórdia para os amoritas nem para os filisteus e
cananeus, não poderá haver misericórdia para esses desgarrados. Se perecermos
junto a eles, mereceremos. Vede o que vosso servo Philip, conde de Arundel,
esculpiu na parede da sua miserável prisão. Percebei as suas palavras: quanto
mais sofrimentos suportarmos por Cristo neste mundo, maior será a glória que
receberemos no próximo. Sabemos, Senhor, que isso é verdade. Verdade...,
verdade..., verdade, murmuraram Philip e seus companheiros prisioneiros. Ó
Armada, venha depressa para libertar a Inglaterra! Abençoe todos os seus filhos exilados que
estão a bordo, empunhando armas para salvar a sua terra natal! Os gritos
exaltados ecoaram dentro da câmara húmida feita de pedra.
Isabel.
Maio de 1588
O chicote estalou em busca de
vítimas. Pude ver os cavalos escondidos entre os arbustos para depois fugir
para bem longe enquanto o chicote rasgava as folhas sobre a cabeça. Um grupo de
espanhóis seguiu-o, chamando-o de desgraçado sem valor. Então, o rosto do
perseguidor virou-se para mim, resplandecendo de tanto suor e indagou: majestade,
por que seguras o meu chicote? Um rosto que achei que nunca mais veria: o de Bernardino
Mendoza, embaixador espanhol que expulsei da Inglaterra há quatros anos por
espionagem e que agora vinha em minha direcção enquanto sentia o chicote entre
os dedos. Sentei-me na cama. Ainda podia sentir o cheiro do couro do chicote pairando
no ar por onde havia estalado. E aquele sorriso irónico no rosto de Mendoza,
com os dentes à mostra como marfins amarelados..., estremeci. Foi só um sonho.
Balancei a cabeça para ficar consciente. Os espanhóis não saíam da
minha cabeça, era só isso. Mas..., o Mendoza não me tinha dado um chicote? Ou tínhamos
apenas encontrado um nos seus aposentos quando ele fugiu às pressas? Estava
guardado em algum lugar. Era menor do que o do sonho, útil apenas para incitar
cavalos, não para os castigar. Era preto, trançado e maleável como a cauda de
um gato. O couro espanhol era conhecido pela suavidade e pela força. Talvez por
isso eu o tivesse guardado. O dia ainda não tinha amanhecido. Era muito cedo
para me levantar. Iria deliberar na cama. Sem dúvida que os católicos devotos,
vivendo secretamente aqui na Inglaterra e abertamente na Europa, já estavam na missa
da manhã. Alguns protestantes provavelmente estariam acordados estudando a
Bíblia. Mas eu, o seu líder figurante,
comungaria com o Senhor aqui e sozinha. Eu, Elizabeth Tudor, rainha da Inglaterra
há trinta anos, fui escalada ao nascer para desempenhar o papel de defensora da
fé protestante. Alguns maldosos disseram: Henrique VIII rompeu com o papa e
fundou a sua própria igreja apenas para poder ficar com Ana
Bolena.
Meu pai respondeu: se o papa me excomungar, declará-lo-ei herege e farei o
que quiser. Assim a memória do rei virou piada. Mas com isso veio a necessidade
de abraçar o protestantismo, que se havia transformado na igreja nacional e
agora tinha personalidade, mártires e teologia própria. Para a antiga Igreja
Católica, eu era uma rainha bastarda e usurpadora; por isso digo que o meu
nascimento me impôs o protestantismo. Porque motivo a Inglaterra, um país
pobre, deveria ficar atrelada a outros três, França,
Holanda e Escócia, e encarar a Espanha, o Golias do catolicismo? Meu Deus, já
não era suficiente para mim o facto de ter que
defender e controlar o meu próprio reino?» In Margaret George, Isabel I, O Anoitecer de
um Reinado, tradução de Lara Freitas, Geração Editorial, 2012, ISBN
978-858-130-076-4.
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