segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Isabel I. O Anoitecer de um Reinado. Margaret George. «Porque motivo a Inglaterra, um país pobre, deveria ficar atrelada a outros três, França, Holanda e Escócia, e encarar a Espanha, o Golias do catolicismo?»



Cortesia de wikipedia e jdact

Torre de Londres. Maio de 1588
«(…) Devemos destruí-la. Ela deve ser aniquilada. E o meu padrinho, o rei Filipe, garantirá isso. No meio da penumbra os olhos do padre brilharam. E a quem devemos dedicar a missa?, perguntou. Ao sucesso da Armada!, disse Philip. Que ela nos vingue desta nação de infiéis! Ao sucesso da Armada!, bradaram os demais. O padre começou a paramentar-se, separou uma chávena de cerâmica para usar como cálice, um prato de madeira como base, um lenço como estola. Rezemos, disse para iniciar a oração. Ó Altíssimo, vistes com piedade a blasfémia e o sacrilégio na Inglaterra, antes uma serva obediente, agora renegada. Como antigamente, quando uma nação se corrompia perante falsos deuses, vós os castigáveis com a vara, agora enviais o vosso filho, o rei Filipe da Espanha, um devoto da verdadeira fé, para puni-los. Assim como não houve misericórdia para os amoritas nem para os filisteus e cananeus, não poderá haver misericórdia para esses desgarrados. Se perecermos junto a eles, mereceremos. Vede o que vosso servo Philip, conde de Arundel, esculpiu na parede da sua miserável prisão. Percebei as suas palavras: quanto mais sofrimentos suportarmos por Cristo neste mundo, maior será a glória que receberemos no próximo. Sabemos, Senhor, que isso é verdade. Verdade..., verdade..., verdade, murmuraram Philip e seus companheiros prisioneiros. Ó Armada, venha depressa para libertar a Inglaterra! Abençoe todos os seus filhos exilados que estão a bordo, empunhando armas para salvar a sua terra natal! Os gritos exaltados ecoaram dentro da câmara húmida feita de pedra.

Isabel. Maio de 1588
O chicote estalou em busca de vítimas. Pude ver os cavalos escondidos entre os arbustos para depois fugir para bem longe enquanto o chicote rasgava as folhas sobre a cabeça. Um grupo de espanhóis seguiu-o, chamando-o de desgraçado sem valor. Então, o rosto do perseguidor virou-se para mim, resplandecendo de tanto suor e indagou: majestade, por que seguras o meu chicote? Um rosto que achei que nunca mais veria: o de Bernardino Mendoza, embaixador espanhol que expulsei da Inglaterra há quatros anos por espionagem e que agora vinha em minha direcção enquanto sentia o chicote entre os dedos. Sentei-me na cama. Ainda podia sentir o cheiro do couro do chicote pairando no ar por onde havia estalado. E aquele sorriso irónico no rosto de Mendoza, com os dentes à mostra como marfins amarelados..., estremeci. Foi só um sonho. Balancei a cabeça para ficar consciente. Os espanhóis não saíam da minha cabeça, era só isso. Mas..., o Mendoza não me tinha dado um chicote? Ou tínhamos apenas encontrado um nos seus aposentos quando ele fugiu às pressas? Estava guardado em algum lugar. Era menor do que o do sonho, útil apenas para incitar cavalos, não para os castigar. Era preto, trançado e maleável como a cauda de um gato. O couro espanhol era conhecido pela suavidade e pela força. Talvez por isso eu o tivesse guardado. O dia ainda não tinha amanhecido. Era muito cedo para me levantar. Iria deliberar na cama. Sem dúvida que os católicos devotos, vivendo secretamente aqui na Inglaterra e abertamente na Europa, já estavam na missa da manhã. Alguns protestantes provavelmente estariam acordados estudando a Bíblia. Mas eu, o seu líder figurante, comungaria com o Senhor aqui e sozinha. Eu, Elizabeth Tudor, rainha da Inglaterra há trinta anos, fui escalada ao nascer para desempenhar o papel de defensora da fé protestante. Alguns maldosos disseram: Henrique VIII rompeu com o papa e fundou a sua própria igreja apenas para poder ficar com Ana Bolena. Meu pai respondeu: se o papa me excomungar, declará-lo-ei herege e farei o que quiser. Assim a memória do rei virou piada. Mas com isso veio a necessidade de abraçar o protestantismo, que se havia transformado na igreja nacional e agora tinha personalidade, mártires e teologia própria. Para a antiga Igreja Católica, eu era uma rainha bastarda e usurpadora; por isso digo que o meu nascimento me impôs o protestantismo. Porque motivo a Inglaterra, um país pobre, deveria ficar atrelada a outros três, França, Holanda e Escócia, e encarar a Espanha, o Golias do catolicismo? Meu Deus, já não era suficiente para mim o facto de ter que defender e controlar o meu próprio reino?» In Margaret George, Isabel I, O Anoitecer de um Reinado, tradução de Lara Freitas, Geração Editorial, 2012, ISBN 978-858-130-076-4.

Cortesia de GeraçãoE/JDACT