sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

De Goa a Lisboa. 1676-1677. Charles Dellon. José Brandão. «Cadeiras e palanquins não se veem neste país, e muito menos coches. Quanto a cavalos, existem muito poucos. As pessoas abastadas fazem-se transportar em ‘hamaos’»

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Partida de Goa. Chegada ao Brasil
«(…) O Brasil tem a particularidade de ninguém aqui atingir a grande miséria, aquela que obriga a esmolar o pão. Os desgraçados que aqui chegam, vindos de países longínquos, por mais incapazes que se encontrem para trabalhar, nunca são deixados ao abandono pelas pessoas que têm de seu, constituindo ponto de honra para todos o acolherem em suas casas os miseráveis que ali abordem, havendo casos em que os senhores de qualidade sustentam em suas casas um número avultado de inválidos, sem de tal sequer terem conhecimento, pois os seus capatazes têm ordem para, sem prévia autorização, acolherem e sustentarem quem se apresente a pedir abrigo. A cidade de São Salvador é a capital de todo o Brasil, está situada no 13º grau de latitude meridional e foi construída ao fundo da baía, no lado norte. Em São Salvador residem ricos comerciantes de todas as nações e a prosperidade que tem mantido até hoje o seu comércio, bem como todo o do restante Brasil, deriva da oposição que os seus habitantes têm feito ao estabelecimento da Inquisição (maldita) que não tem siclo possível levar a efeito ali, apesar das muitas diligências dos oficiais do Santo Ofício (maldito). Outrora, havia nesta cidade um bispo, mas desde que São Salvador foi elevada a arcebispado, tornou-se metrópole de todas as dioceses dos domínios do rei de Portugal desde o Trópico de Câncer até ao cabo da Boa Esperança. Da Guiné, de Angola e de outros lugares de África são levados para o Brasil grande número de escravos, que são vendidos publicamente em mercados como se fossem animais. Estes escravos são empregados nos trabalhos mais pesados e tratados da maneira mais cruel que aquela que os corsários dão aos prisioneiros cristãos. Aqueles, porém, que conseguem as boas graças do seu dono são dispensados dos trabalhos mais violentos, ficando encarregues das funções domésticas, mais leves; acompanham os seus senhores à cidade e ajudam aos transportes. Cadeiras e palanquins não se veem neste país, e muito menos coches. Quanto a cavalos, existem muito poucos. As pessoas abastadas fazem-se transportar, tanto na cidade como no campo, em hamaos, uma espécie de redes com o comprimento de cerca de sete pés e com a largura de quatro, que vai pendurada por dois lados num grosso tronco. Dois escravos carregam este engenho, apoiando as extremidades da viga nos ombros, enquanto outros escravos, empunhando guarda-sóis, cobrem de sombra quem vai deitado na rede.
A não ser pelos navios que por acidente ou necessidade de abastecimento sejam obrigados a aportar no Brasil, as comunicações regulares com a metrópole são feitas anualmente, pelo menos, por uma numerosa frota que parte de Portugal e que, ao atingir a linha, se divide em várias esquadras, seguindo uma para o Rio de Janeiro, outra para Pernambuco e, a maior, para São Salvador. A corte de Portugal faz sempre acompanhar estas esquadras por navios de guerra, que escoltam os navios mercantes carregados com grandes quantidades de mercadorias da Europa, necessárias aos habitantes do Brasil. Logo que os navios estejam (de novo) carregados e as tripulações suficientemente refeitas, todas as esquadras voltam a reunir-se em certo ponto previamente escolhido e daí se fazem à vela, conjuntamente, de regresso a Lisboa. Assim os comerciantes estão menos expostos aos assaltos dos corsários que não desistem de os aguardar, na esperança de surpreenderem algum navio que por imprudência ou desventura se afaste do corpo da esquadra. Pouco depois da minha chegada à Baía de Todos os Santos, a esquadra que vinha de Portugal ancorou também ali. Trabalhou-se então apressadamente a carregar todos os navios e a pô-los em estado de se fazerem ao mar, levando-nos também, para o que estávamos preparados desde Agosto. Nos começos de Setembro fizeram-me embarcar para Lisboa. Esta última viagem, porém, não foi tão tranquila como a que havíamos feito da India para a Baía». In José Brandão, Este é o Reino de Portugal, Saída de Emergência,2013, ISBN 978-989-637-457-0

Cortesia de SEmergência/JDACT