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Londres. 1840
«(…) Enquanto o rapaz, Henry, estava na
escola, a tia Eppie passava as manhãs connosco em Fosse House, a tratar da
roupa da casa e a ensinar-me a coser. Nunca conheci o marido dela, cujo vício
da bebida o votou ao ostracismo, embora uma vez eu tivesse ouvido a mãe
descrevê-lo a uma amiga, a senhora Hardcastle, chamando-lhe incapaz. Eppie era
uma criatura baixa e de cara larga, que não tinha nada em comum com a mãe,
excepto o facto de ambas serem naturais de Derbyshire e umas trabalhadoras
incansáveis. A mãe não suportava coser e Eppie não se sentia feliz sem uma
agulha na mão; a mãe era filha de um proprietário rural e Eppie de um alfaiate;
a mãe não se dispunha a dedicar mais de uma ou duas horas por dia aos meus
estudos, enquanto a tia Eppie me ensinava a fazer imitação de renda de guipure em croché e uma cercadura de
ponto de cruz numa toalha de linho, e a franzir uma blusa de musselina.
Trabalhávamos lado a lado na sala da manhã e lembro-me do cheiro da sua transpiração,
do folho juvenil de renda feita à mão que lhe emoldurava o cabelo, com um risco
ao meio bem visível, do seu rosto pálido e da tensão das suas mãos enquanto cosia.
Tresandava a doença e tinha mau hálito. Quando eu tinha oito anos, já ela se encontrava
demasiado fraca para vir a nossa casa, embora a mãe me levasse a visitá-la uma vez
na vivenda de Wandsworth. Estava deitada sobre um monte de almofadas, com a
face perdida no meio das abas da touca e um pedaço de folho com a agulha
enfiada caído entre as pregas da colcha. Sorria como se pedisse desculpa e não
conseguia falar por causa da tosse. Depois disso, desapareceu completamente da
minha vida, embora eu tivesse herdado a sua habilidade, a sua pequena colecção de
livros sobre bordados e uma caixa de costura de couro, com agulhas, tesouras, colchetes
e um canivete, com cabo de madrepérola. De repente, a mãe ficou mais ocupada do
que nunca, pois teve de administrar a casa dos Thewell e a nossa, tratar de um
funeral e mandar o viúvo para casa de uma tia que o ajudasse a recuperar do golpe
sofrido com a morte da mulher. Entretanto, tínhamos de receber o rapaz. Quando
Henry começou a morar na nossa casa tranquila, era um jovem de rosto esguio, com
uma tez doentia e um olhar vazio que denotava sofrimento. O rapaz ficará connosco só até acabar os
estudos ou o pai voltar a aguentar-se nas pernas, disse a mãe. Dormirá no
quarto ao lado do teu e sairá todos os dias. Mal daremos pela presença dele. Mas
eu dei pela presença dele, reparei em tudo o que lhe dizia respeito: os sons
cautelosos quando se levantava de manhã, o pequeno-almoço frugal, constituído por
chá e uma torrada, a maneira como se esgueirava de casa, como se receasse agitar
o ar ao fechar a porta, o seu regresso às seis horas e o modo como desaparecia no
seu quarto assim que o jantar terminava. Reparei que tinha os dedos compridos como
a mãe e que andava sempre acompanhado de um livro. Até à hora das refeições havia
um a sair-lhe do bolso e, quando ele ia para a escola, de manhã, eu corria para
uma janela do primeiro andar e via-o abri-lo e começar a ler. Só por milagre não
tropeçava, mas era hábil a evitar obstáculos, mesmo sem tirar os olhos do papel. Eu e ele não tínhamos nada a dizer um ao
outro. Afinal, Henry era um rapaz e oito anos mais velho do que eu. E a sua defunta
mãe, a pobre tia Eppie, tremeluzia no meio de nós. Parti do princípio de que
Henry ficara ainda mais triste do que eu com a morte dela, mas ignorava até que
ponto. Todavia, numa tarde de chuva, reparei que, apesar dos avisos da minha mãe
durante o pequeno-almoço, ele se esquecera de levar um chapéu-de-chuva do
bengaleiro da entrada e fiquei muito perturbada porque este era o tipo de pormenor
a que costumávamos estar atentos precisamente antes de ele chegar. Passei uma
hora debruçada sobre o meu bordado, a pensar como havia de remediar a situação.
Por fim, pedi autorização à mãe para atravessar o jardim com um chapéu-de-chuva
e ir abrir-lhe o portão. Deste modo, ele poderia cortar caminho e abrigar-se durante
os últimos minutos, pelo menos. Isso seria simpático, Mariella. Então, desatei a
correr pelo caminho de tijolos que bordejava o relvado e atravessei aquilo que esperávamos
que um dia fosse um descampado, na direcção dos canteiros cheios de ervas. Havia
pedras para pormos os pés até chegarmos ao portão, que estava semicoberto de clematite
e tinha uma fechadura bem oleada». In Katharine Mc Mahon, A Rosa de Sebastopol,
2007, tradução de Filomena Duarte, Casa das Letras, 2010, ISBN
978-972-461-938-5.
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