quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

A Rosa de Sebastopol. Katharine Mc Mahon. «O rapaz ficará connosco só até acabar os estudos ou o pai voltar a aguentar-se nas pernas, disse a mãe. Dormirá no quarto ao lado do teu e sairá todos os dias»

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Londres. 1840
«(…) Enquanto o rapaz, Henry, estava na escola, a tia Eppie passava as manhãs connosco em Fosse House, a tratar da roupa da casa e a ensinar-me a coser. Nunca conheci o marido dela, cujo vício da bebida o votou ao ostracismo, embora uma vez eu tivesse ouvido a mãe descrevê-lo a uma amiga, a senhora Hardcastle, chamando-lhe incapaz. Eppie era uma criatura baixa e de cara larga, que não tinha nada em comum com a mãe, excepto o facto de ambas serem naturais de Derbyshire e umas trabalhadoras incansáveis. A mãe não suportava coser e Eppie não se sentia feliz sem uma agulha na mão; a mãe era filha de um proprietário rural e Eppie de um alfaiate; a mãe não se dispunha a dedicar mais de uma ou duas horas por dia aos meus estudos, enquanto a tia Eppie me ensinava a fazer imitação de renda de guipure em croché e uma cercadura de ponto de cruz numa toalha de linho, e a franzir uma blusa de musselina. Trabalhávamos lado a lado na sala da manhã e lembro-me do cheiro da sua transpiração, do folho juvenil de renda feita à mão que lhe emoldurava o cabelo, com um risco ao meio bem visível, do seu rosto pálido e da tensão das suas mãos enquanto cosia. Tresandava a doença e tinha mau hálito. Quando eu tinha oito anos, já ela se encontrava demasiado fraca para vir a nossa casa, embora a mãe me levasse a visitá-la uma vez na vivenda de Wandsworth. Estava deitada sobre um monte de almofadas, com a face perdida no meio das abas da touca e um pedaço de folho com a agulha enfiada caído entre as pregas da colcha. Sorria como se pedisse desculpa e não conseguia falar por causa da tosse. Depois disso, desapareceu completamente da minha vida, embora eu tivesse herdado a sua habilidade, a sua pequena colecção de livros sobre bordados e uma caixa de costura de couro, com agulhas, tesouras, colchetes e um canivete, com cabo de madrepérola. De repente, a mãe ficou mais ocupada do que nunca, pois teve de administrar a casa dos Thewell e a nossa, tratar de um funeral e mandar o viúvo para casa de uma tia que o ajudasse a recuperar do golpe sofrido com a morte da mulher. Entretanto, tínhamos de receber o rapaz. Quando Henry começou a morar na nossa casa tranquila, era um jovem de rosto esguio, com uma tez doentia e um olhar vazio que denotava sofrimento. O rapaz ficará connosco só até acabar os estudos ou o pai voltar a aguentar-se nas pernas, disse a mãe. Dormirá no quarto ao lado do teu e sairá todos os dias. Mal daremos pela presença dele. Mas eu dei pela presença dele, reparei em tudo o que lhe dizia respeito: os sons cautelosos quando se levantava de manhã, o pequeno-almoço frugal, constituído por chá e uma torrada, a maneira como se esgueirava de casa, como se receasse agitar o ar ao fechar a porta, o seu regresso às seis horas e o modo como desaparecia no seu quarto assim que o jantar terminava. Reparei que tinha os dedos compridos como a mãe e que andava sempre acompanhado de um livro. Até à hora das refeições havia um a sair-lhe do bolso e, quando ele ia para a escola, de manhã, eu corria para uma janela do primeiro andar e via-o abri-lo e começar a ler. Só por milagre não tropeçava, mas era hábil a evitar obstáculos, mesmo sem tirar os olhos do papel. Eu e ele não tínhamos nada a dizer um ao outro. Afinal, Henry era um rapaz e oito anos mais velho do que eu. E a sua defunta mãe, a pobre tia Eppie, tremeluzia no meio de nós. Parti do princípio de que Henry ficara ainda mais triste do que eu com a morte dela, mas ignorava até que ponto. Todavia, numa tarde de chuva, reparei que, apesar dos avisos da minha mãe durante o pequeno-almoço, ele se esquecera de levar um chapéu-de-chuva do bengaleiro da entrada e fiquei muito perturbada porque este era o tipo de pormenor a que costumávamos estar atentos precisamente antes de ele chegar. Passei uma hora debruçada sobre o meu bordado, a pensar como havia de remediar a situação. Por fim, pedi autorização à mãe para atravessar o jardim com um chapéu-de-chuva e ir abrir-lhe o portão. Deste modo, ele poderia cortar caminho e abrigar-se durante os últimos minutos, pelo menos. Isso seria simpático, Mariella. Então, desatei a correr pelo caminho de tijolos que bordejava o relvado e atravessei aquilo que esperávamos que um dia fosse um descampado, na direcção dos canteiros cheios de ervas. Havia pedras para pormos os pés até chegarmos ao portão, que estava semicoberto de clematite e tinha uma fechadura bem oleada». In Katharine Mc Mahon, A Rosa de Sebastopol, 2007, tradução de Filomena Duarte, Casa das Letras, 2010, ISBN 978-972-461-938-5.
Cortesia de CdasLetras/JDACT