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Baudolino
encontra Nicetas Coniates
«(…)
Nicetas e Baudolino estavam sentados frente a frente, no aposento de uma
pequena torre, com bíforas que se abriam para três lados. Uma delas mostrava o
Corno de Ouro e a margem oposta de Pera, com a torre de Gálata, que emergia em
meio ao cortejo de aldeias e choupanas; da outra, via-se o canal do porto que
desembocava no Braço de São Jorge; e, por fim, a terceira dava para o Ocidente,
e dela devia-se ver toda Constantinopla. Mas naquela manhã, a cor suave do céu
fora ofuscada pela densa fumaça dos palácios e das basílicas consumidas pelo
fogo. Era o terceiro incêndio que castigava a cidade nos últimos nove meses, o
primeiro destruíra lojas e reservas da corte, desde as Blachernae até às
muralhas de Constantino; o segundo devorara todos os armazéns dos venezianos,
dos amalfitanos, dos pisanos, e dos hebreus, de Perama até a outra costa, com
excepção do bairro dos genoveses, quase aos pés da Acrópole; e o terceiro
estava agora queimando por todas as regiões. Na parte baixa, havia um
verdadeiro rio de chamas, caíam os pórticos, desabavam os palácios,
quebravam-se as colunas, as bolas de fogo que saltavam do centro daquele
incêndio consumiam as casas distantes, depois as chamas, incitadas pelos
ventos, que caprichosamente alimentavam aquele inferno, voltavam a devorar o
que antes haviam poupado. No alto, erguiam-se nuvens densas, ainda avermelhadas
na base pelos reflexos do fogo, mas de uma cor diversa, não se sabe se por uma
ilusão dos raios do sol nascente ou se pela natureza das especiarias, das
madeiras ou de outra matéria em combustão. E mais, conforme o vento soprava, de
pontos diferentes da cidade, provinham aromas de noz-moscada, canela, pimenta,
açafrão, mostarda ou gengibre, assim, a mais bela cidade do mundo queimava, mas
como um braseiro de aromas perfumados.
Baudolino
dava as costas à terceira bífora, e parecia uma sombra escura aureolada pela
dupla claridade do dia e do incêndio. Nicetas ora o escutava, ora recordava os
acontecimentos dos dias passados. Assim, aquela manhã de quarta-feira, 14 de
Abril do ano do Senhor de 1204,
ou seja seis mil setecentos e doze desde o início do mundo, como se
costumava calcular em Bizâncio, era já o segundo dia desde que os bárbaros
haviam tomado posse de Constantinopla. O exército bizantino tão cintilante com as
suas armaduras, escudos e elmos quando desfilava, e a guarda imperial de
mercenários ingleses e dinamarqueses, armados com as suas terríveis bipenes,
que ainda na sexta-feira haviam enfrentado os inimigos, lutando com bravura,
cederam na segunda-feira, quando o inimigo violou as muralhas. Foi uma vitória
tão inesperada que os próprios vencedores pararam, temerosos, ao anoitecer,
esperando uma reacção e, para manter distantes os defensores, atearam um novo
incêndio. Mas, na manhã de terça-feira, toda a cidade percebeu que, durante a
noite, o usurpador Aleixo Ducas Murtzuflo fugira para o interior. Os cidadãos,
órfãos agora, e derrotados, amaldiçoaram aquele ladrão de tronos que celebraram
até a noite anterior, assim como o haviam lisonjeado quando estrangulara o seu
predecessor, e não sabendo o que fazer (assustados, assustados, assustados, que
vergonha, lamentava Nicetas, diante da desonra daquela rendição), haviam-se
reunido num grande cortejo, com o patriarca e todos os padres com vestes
rituais, os monges que imploravam misericórdia, prontos a venderem-se aos novos
poderosos como sempre se venderam aos antigos, as cruzes e as imagens de Nosso
Senhor erguidas para o alto, não menos do que os seus gritos e lamentos, foram
assim ao encontro dos conquistadores, esperando amansá-los.
Que
loucura esperar piedade daqueles bárbaros, que não precisavam que o inimigo se
rendesse para fazer o que sonhavam há meses: destruir a cidade mais ampla, mais
povoada, mais rica, mais nobre do mundo, e dividirem os seus espólios. O imenso
cortejo dos chorões estava diante de incrédulos de cenho irado, com a espada
ainda vermelha de sangue, com cavalos que tropeavam. Como se o cortejo não
existisse, deram início ao saque. Ó Cristo Senhor, quantas não foram as nossas
angústias e tribulações! Mas como e por que o fragor do mar, o ofuscamento ou a
total escuridão do sol, o halo vermelho da lua, o movimento das estrelas não
haviam previsto aquela última desventura? Assim chorava Nicetas, na noite de
terça-feira, com os seus passos perdidos naquela cidade que fora a capital dos
últimos romanos, buscando evitar as hordas dos infiéis e encontrando as ruas
obstruídas por novos focos de incêndio, desesperado por não poder tomar o caminho
de casa, temendo que alguns daqueles canalhas ameaçassem a sua família». In
Umberto Eco, Baudolino, 2001, tradução de Marco Lucchesi, Editora Record,
Brasil, 2010, ISBN 978-857-799-002-3.
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