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«Ainda
não consegui compreender o meu acidente. Tenho recordado vezes sem conta os acontecimentos
desse dia, o dia do desastre, com a plena consciência que adquiri desde então para
cá. Tenho recordado ainda os acontecimentos dos meses anteriores ao desastre, os
acontecimentos que deviam explicá-lo. Mas continua a ser um mistério! O mistério
não reside no facto de um homem tão próspero como eu tentar matar-se. Havia motivos
para que o fizesse. O mistério está na maneira como sucedeu. Não acredito em fantasmas.
Mas, mesmo hoje que sou um homem totalmente diferente e que vivo de uma maneira
totalmente diferente também, quando me interrogo sobre o que sucedeu na verdade,
pergunto logo a seguir qual foi a mão, e a quem pertencia, que desceu do azul absoluto,
torceu o volante do meu Triumph de dois
lugares e, apesar de toda a minha força e determinação, manteve o rumo que me atirou
contra o flanco de uma camioneta a grande velocidade. Tudo aconteceu no espaço de
um ou dois segundos, mas é a única coisa de que me lembro distintamente. A fortuna
devia proporcionar uma protecção qualquer contra fantasmas ou o subconsciente ou
outras influências; é o mínimo que devia esperar-se do êxito. Ou do dinheiro.
Mas não, nenhum deles o consegue. Encontrei-me indefeso, repito, contra a força
daquela mão, ou o que quer que fosse, que me arrancou o controle do meu TR 4, o
manteve com firmeza naquele caminho e por fim o enfeixou no flanco da camioneta.
Os
acontecimentos que precederam o acidente nada dizem, repito, dos motivos. É verdade
que, onze meses antes, tinha-me separado de uma rapariga a quem estava muito ligado.
Mas havia-me refeito durante esses onze meses; na realidade, estava a portar-me
lindamente. A minha mulher, Florence, e eu éramos a inveja de todos os casais de
Beverly Hills e Bradshaw Park. O Casal de Ouro! Esse cognome fora-nos atribuído
durante os onze meses que decorreram entre o dia em que desisti de Gwen e o dia
do meu acidente. Além disso, a maior parte dos homens meus conhecidos teve de enfrentar
dolorosas opções do mesmo género, numa ou noutra altura da vida, fizeram-no e com
o tempo curaram-se, sentindo-se talvez despojados de alguma coisa mas muito mais
sãos. Sabia que tinha de desistir de Gwen. Sabia que tinha chegado o momento, o
momento em que ainda é possível afastarmo-nos livres e limpos, sem
ressentimentos duradoiros para qualquer dos lados, e exactamente antes desse outro
momento em que alguém ficará ferido. Estava bem consciente do perigo que corria;
na realidade, dizia com frequência de mim para mim afasta-te, rapaz, antes que seja
tarde de mais! Já tinha passado em revista certos pontos fundamentais. De facto,
depois de se viver vinte e um anos com uma mulher, como eu vivera com Florence,
isso representa alguma coisa de valor. E, para falar francamente, um divórcio é
um acto dispendioso. Eu nem sequer conhecia bem a outra rapariga, ou, para ser
mais preciso, conhecia-a muito bem mas apenas num aspecto: o de todos os
contornos do seu corpo.
E, que
diabo, pensei eu, tenho muitíssimo a perder. Nessa altura era um homem bem estabelecido,
solvente, firme na vida. Possuía uma bonita casa no Bradshaw Park de Los Angeles,
onde havia (isto talvez pareça tolo, eu sei) o relvado mais extraordinário das cercanias
e lindas plantas que eu próprio dispusera; uma colecção de discos bastante
grande, incluindo alguns raros de 78; dois valiosos desenhos originais de Picasso;
um congelador com capacidade para 36 pés cúbicos de comida; e. três automóveis,
o Continental, de Florence; o Karmann Ghia, da minha filha Ellen, e o Triumph TR 4, que eu havia de esmagar mais
tarde. Tudo isso e uma piscina. Era muito para trocar por um bom coito, mesmo por
um-formidável! E quando pensava em tudo aquilo e também na família, dizia: mas em
que diabo te estás tu a meter? Todos os homens compreenderão o que quero dizer,
especialmente os europeus, que, apesar do que geralmente se pensa, são muito menos
românticos do que nós e têm uma perfeita noção do valor da propriedade. Estava a
portar-me da maneira mais insensata com aquela rapariga, a Gwen. A princípio costumava
encontrar-me com ela duas ou talvez três vezes por semana, sem agitar a superfície
da minha respeitável existência. Era assim que me convinha. Por exemplo,
costumava parar num motel, a caminho do escritório, e alugar um quarto. Depois,
numa altura qualquer, durante a manhã, telefonava a Gwen. Ela também trabalhava
(ninguém sabia em quê) no Williams e MacElroy, onde eu fazia parte dos funcionários
superiores. Dizia-lhe apenas onde e um número, o do quarto». In Elia
Kazan, The Arrangement, O Compromisso, tradução de Maria Teresa Ramos,
Editorial Ibis, Círculo de Leitores, 1967.
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