Cortesia de wikipedia e jdact
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Quando o encontrar preste bem atenção, disse ao praticante: costumam ter areia
no coração. Em seguida falou com o comissário como quem fala a um subalterno. ordenou-lhe
que desse um jeito em todas as instâncias para que o enterro se realizasse
nessa mesma tarde e com o maior sigilo. Disse: eu falo depois com o presidente.
Sabia que Jeremiah de Saint-Amour era de uma austeridade primitiva, e que
ganhava com a sua arte muito mais do que carecia para viver, de modo que em
algumas das gavetas da casa devia haver dinheiro de sobra para os gastos do
enterro. Mas se não o acharem, não importa, disse. Eu encarrego-me de tudo. Mandou
que se dissesse aos jornais que o fotógrafo tinha morrido de morte natural,
embora achasse que a notícia não lhes interessava de modo nenhum. Disse: se for
necessário, falo com o governador. O comissário, um empregado sério e humilde,
sabia que o rigor cívico do mestre exasperava até os seus amigos mais chegados,
e estranhava a facilidade com que saltava por cima dos trâmites legais para
apressar o enterro. Só não acedeu em falar com o arcebispo para que Jeremiah de
Saint-Amour fosse sepultado em terra consagrada. O comissário, mortificado com a
sua própria impertinência, tratou de se desculpar. A minha ideia é que este
homem era um santo, disse. Era algo ainda mais raro, disse o doutor Urbino: um
santo ateu. Mas esses assuntos a Deus pertencem. Remotos, do outro lado da
cidade colonial, se ouviram os sinos da catedral chamando à missa solene. O
doutor Urbino repôs os óculos de meia-lua com armação de ouro e consultou o
relógio da corrente, que era quadrado e fino, a sua tampa abria-se com uma
mola: estava a ponto de perder a missa de Pentecostes. Na sala havia uma enorme
máquina fotográfica sobre rodas como as dos jardins públicos, e o telão de um
crepúsculo marinho pintado com tintas artesanais, e as paredes estavam forradas
de retratos de crianças em suas datas memoráveis: a primeira comunhão, a
fantasia de coelho, o aniversário feliz. O doutor Urbino tinha visto o
revestimento paulatino dos muros, ano após ano, durante as cavilações absortas
das tardes de xadrêz, e havia pensado muitas vezes com um latejar de desolação
que nessa galeria de retratos casuais estava o germe da cidade futura,
governada e pervertida por aqueles meninos incertos, e na qual já não restariam
sequer as cinzas da sua glória. Na secretária, junto a um pote com vários
cachimbos de lobo-do-mar, estava o tabuleiro de xadrêz com uma partida
inconclusa. Apesar da sua pressa e de seu ânimo sombrio, o doutor Urbino não
resistiu à tentação de estudá-la. Sabia que era a partida da noite anterior,
pois Jeremiah de Saint-Amour jogava todas as tardes da semana e pelo menos com
três adversários diferentes, mas chegava sempre até ao final e guardava depois
o tabuleiro e as pedras na sua caixa, e guardava a caixa numa gaveta da secretária.
Sabia que jogava com as peças brancas, e aquela vez era evidente que ia ser
derrotado sem salvação em quatro jogadas mais. Se tivesse sido um crime, aqui
haveria uma boa pista, disse a si mesmo. Só conheço um homem capaz de compôr
esta emboscada de mestre. Não teria podido viver sem averiguar mais tarde o
motivo porque aquele soldado indómito, acostumado a se bater até à última gota
de sangue, havia deixado por terminar a guerra final da sua vida. Às seis da
manhã, quando fazia a última ronda, o guarda-nocturno tinha visto o letreiro
pregado na porta da rua: entre sem tocar e avise a polícia. Pouco depois
acudiu o comissário com o estudante, e ambos tinham revistado a casa em busca
de alguma evidência contra o bafo inconfundível das amêndoas amargas. Mas nos
breves minutos que durou a análise da partida inconclusa, o comissário
descobriu entre os papéis da secretária um envelope dirigido ao doutor Juvenal
Urbino, e protegido por tantos selos de lacre que foi necessário despedaçá-lo
para tirar a carta. O médico afastou a cortina preta da janela para ter melhor
luz, lançou primeiro um olhar rápido às onze folhas escritas dos dois lados com
uma caligrafia caprichada, e logo que leu o primeiro parágrafo compreendeu que
tinha perdido a comunhão de Pentecostes. Leu com a respiração acelerada,
voltando atrás em várias páginas para retomar o fio perdido, e quando terminou
parecia regressar de muito longe e de muito tempo. O seu abatimento era
visível, apesar do esforço que fazia para ocultá-lo: tinha nos lábios a mesma
coloração azul do cadáver, e não pôde dominar o tremor dos dedos quando voltou
a dobrar a carta e a guardá-la no bolso do colete. Então lembrou-se do
comissário e do médico jovem, e sorriu aos dois das brumas do seu abatimento. Nada
de anormal, disse. São as suas últimas vontades. Era uma meia verdade, mas eles
acreditaram, porque ele lhes mandou levantar um ladrilho solto do pavimento e
ali encontraram um caderno de contas, muito usado, onde estavam as chaves para
abrir o cofre-forte. Não havia tanto dinheiro como pensavam, mas havia de sobra
para os gastos do enterro e para saldar outros compromissos menores. O doutor
Urbino já estava então consciente de que não conseguiria chegar à catedral
antes do Evangelho. É a terceira vez que perco a missa de Domingo desde que
tenho uso da razão, disse. Mas Deus entende. Preferiu por isso demorar mais uns
minutos para deixar todos os pormenores esclarecidos, embora mal pudesse
suportar a ansiedade de compartilhar com a sua esposa as confidências da carta.
Comprometeu-se a avisar os numerosos refugiados do Caribe que viviam na cidade,
caso quisessem render as últimas homenagens a quem se havia comportado como o
mais respeitável de todos, o mais activo e radical, mesmo depois de se tornar
demasiado evidente que havia sucumbido à sedimentação do desencanto. Também
avisaria os seus parceiros de xadrêz, entre os quais havia tantos profissionais
insignes como artesãos obscuros, e a outros amigos menos assíduos, mas que
talvez quisessem assistir ao enterro. Antes de conhecer a carta póstuma tinha
resolvido que ele era o primeiro, mas depois de lê-la não estava mais seguro de
nada». In Gabriel Garcia Márquez, O Amor nos Tempos de Cólera, 1985, Editora
Record, 2011, ISBN 978-850-102-872-3.
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