quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

O Segredo da Casa de Riverton. Kate Morton. «Tão diferente de Sylvia, apenas quinze anos mais nova, que anda por aí de saia justa, ri muito alto e muda de cor de cabelo quando muda de namorado»

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A sala de visitas
«(…) A maquilhagem devolveu alguma cor ao meu rosto, mas tive o cuidado de não deixar que a Sylvia exagerasse. Receio ficar parecida com o manequim de um cangalheiro. Não é preciso muito rouge para comprometer o equilíbrio: o que resta de mim é tão pálido, tão pequeno. Com alguma dificuldade, coloquei o medalhão de ouro em volta do pescoço, a sua elegância típica do século XIX contrastava com o meu vestuário prático. Endireitei-o, curiosa com o meu atrevimento. Curiosa em saber o que diria a Ruth quando o visse. Baixei o olhar. A pequena moldura de prata na minha cómoda. Uma foto do dia do meu casamento. De bom grado não a teria ali. Foi há tanto tempo e durou tão pouco, pobre John, mas é um gesto que concedo à Ruth. Agrada-lhe, creio, imaginar que sinto falta dele. Sylvia acompanhou-me até à sala das visitas, ainda me arranha os ouvidos chamar-lhe assim, onde servem o pequeno-almoço e onde devia esperar pela Ruth, que concordou (embora, segundo diz, não lhe pareça bem) em levar-me de carro até à Shepperton Studios. pedi à Sylvia que me sentasse, sozinha, na mesa do canto e me trouxesse um copo de sumo, então voltei a ler a carta de Ursula. A Ruth chegou às oito e meia em ponto, podia ter dúvidas quanto às vantagens desta viagem, mas é, e sempre foi, de uma incorrigível pontualidade. Ouvi dizer que as crianças nascidas em tempos conturbados nunca perdem o ar melancólico e Ruth, uma criança da 2.ª Guerra, não é excepção à regra. Tão diferente de Sylvia, apenas quinze anos mais nova, que anda por aí de saia justa, ri muito alto e muda de cor de cabelo quando muda de namorado.
Esta manhã a Ruth atravessou a sala, bem vestida, impecavelmente arranjada, mas mais rígida que um poste de madeira. Bom dia, mãe, disse ela, roçando os lábios frios nas maçãs do meu rosto. Já acabaste o teu pequeno-almoço?, olhou de relance para o copo meio vazio à minha frente. Espero que tenhas comido mais do que isso. É provável que apanhemos o trânsito matinal pelo caminho e não teremos tempo de parar. Olhou para o relógio. Tens de ir à casa de banho? Abanei a cabeça, tentando perceber desde quando passara a ser a criança. Estás a usar o medalhão do pai; não o via há muito tempo. Chegou-se à frente para o ajustar, acenando aprovadoramente com a cabeça. Tinha olho, não tinha? Concordei, tocada pelo modo como as pequenas falsidades que contamos aos muito jovens se tornam objecto de uma crença inabalável. Senti uma onda de afecto pela minha filha irritadiça, reprimi rapidamente a velha e estafada culpa paternal que sempre vem à tona quando vejo o seu rosto ansioso.
Pegou-me pelo braço, cruzou-o com o seu, colocando a bengala na minha outra mão. Muitos preferem o andadeiro ou mesmo aquelas cadeiras motorizadas, mas continuo muito bem com a minha bengala, além de ser uma criatura de hábitos sem razões para abdicar deles. É boa rapariga, a minha Ruth, firme e íntegra. Vestiu-se formalmente hoje, como o faria se fosse visitar o advogado ou o médico. Já o adivinhava. Queria causar boa impressão; mostrar a esta realizadora que independentemente do que a sua mãe possa ter feito no passado, Ruth Bradley McCourt é uma respeitável senhora da classe média, muito obrigado. Percorremos em silêncio uma parte do caminho até que Ruth começou a sintonizar o rádio. Tinha os dedos de uma mulher idosa, os nós por onde forçara os anéis a entrar, naquela manhã, estavam inchados. É espantoso ver a nossa própria filha envelhecer. Olhei então para as minhas próprias mãos, pousadas sobre o colo. Mãos outrora tão activas, que executavam as tarefas humildes como as mais complexas; mãos agora cinzentas, flácidas, inertes. Ruth parou, por fim, num programa de música clássica. O locutor falou durante algum tempo, de modo bastante frívolo, acerca do seu fim-de-semana, e começou a passar Chopin. Uma coincidência, certamente, ouvir logo hoje a valsa em dó menor. Ruth estacionou em frente de uma série de enormes edifícios brancos, quadrados, como hangares para aviões. Desligou o motor e deixou-se estar sentada por alguns instantes, olhando em frente. Não sei porque tens de fazer isto, disse ela calmamente, com os lábios apertados. Fizeste tanto com a tua vida. Viajaste, estudaste, criaste uma filha... Por que queres ser lembrada pelo que eras antes? Não esperava que lhe desse resposta e não o fiz. Suspirou abruptamente, saltou para fora do carro e foi buscar a minha bengala ao porta bagagens. Sem dizer palavra, ajudou-me a levantar. Uma jovem esperava-nos. Uma rapariga magra com cabelo louro muito comprido que lhe caía a direito pelas costas e à frente culminava numa franja compacta. Era o tipo de rapariga a quem podíamos chamar feia, não tivesse sido abençoada com uns olhos negros tão fascinantes. Pareciam parte de um retrato a óleo, redondos, profundos e expressivos, a generosa cor da tinta húmida». In Kate Morton, O Segredo da Casa de Riverton, 2006, tradução de Vítor Guerreiro, Porto Editora, Porto, 2008, ISBN 978-972-004-160-9.

Cortesia de PortoE/JDACT