Cortesia
de wikipedia e jdact
«Sinto
odor de carne apodrecida invadir as minhas narinas, à medida que me aproximo do
único mundo que conheci desde o momento no qual o Senhor me dera o dom do
raciocínio. Quem sou eu para tocar em seu santo nome? Maculei a minha
alma nesta noite maldita! Cruzei a ténue linha que separa o homem da besta, o
pecador do virtuoso. Minha luxúria transcendeu qualquer mensura, igualando-me à
mais nefasta cria do abismo! O trilho que conduz à vila de Woosonat está
coberta por galhos de aspecto semelhante aos braços de um cadáver no seu
descanso eterno. Como desejo cerrar meus olhos e ingressar no sono sem sonhos
dos que aguardam o julgamento! Como desejo livrar-me da dor e do horror, do
remorso e da vergonha pairando como uma gigantesca sombra sobre meu espírito! Um
luar pálido cintila delicados fios de prata na margem do Blackstone enquanto o meu
corpo geme a cada passo rumo ao lar. Braços, tórax, pernas e ombros, tudo está
recoberto por seiva humana. Sim... A tinta escarlate a pulsar nas corredeiras
sob a pele; usada pelo messias para simbolizar o holocausto, a expiação de
nossos pecados. Se o filho do homem imaginasse o que aconteceria esta
noite, jamais se deixaria pregar na cruz por seus algozes romanos... Tudo em
nome do mesmo amor proclamado por ele em seus sermões. Tudo em nome do
mesmo amor pelo qual seu pai imolara o único e verdadeiro filho. Estou
nu. As minhas vergonhas são acariciadas pelo vento do Outono, balançando no
vazio a rodear-me como frutas amadurecidas. Por que motivo me deixei levar pelo
clamor da carne, cedendo à tentação? Por qual motivo não me entreguei à contricção,
orando por ela como todo homem de fé deveria fazer? Avanço mais um pouco e
posso distinguir os cumes das chaminés no meio emaranhado de copas fixadas
desde o topo ao sopé da colina onde os fundadores decidiram criar um mundo
livre dos abusos e depravação reinantes na distante Europa. Europa... A terra
mãe dos meus ancestrais nada mais é do que um nome sem significado nas
entranhas de Rhode Island. Sou um cidadão americano, tão americano quanto ela e
o seu povo. Não! Mesmo tendo nascido neste lugar inóspito, mal tocado pela mão
do homem branco, não posso requerer um título cujo direito é apenas dos que já
estavam aqui antes de Colombo! Sinto pedaços de carne desprenderem-se das solas
feridas. Meus pés gritam em sofrimento, implorando por um alívio que não
poderei conceder-lhes até chegar ao meu lar. Meu lar? Como ainda reivindico tal
propriedade, se hoje me tornei um pária, um monstro inominável cuja alma é tão
negra quanto o breu a cobrir o vale nesta noite? Espinhos mordem a pele
desprotegida de braços e abdómen, rasgando o seu caminho até aos músculos
extenuados. Não sei o que me move e sinto, contudo, não ser capaz de parar
minha marcha, até atingir o objectivo: um sussurro esgueirando-se no fundo de
minha mente. Mais um pouco e chegaria à residência dos Fierce, onde poderia
reunir algum dinheiro, roupas e partir sem rumo, deixando para trás o lugar
onde perdi a alma em troca de prazeres reservados apenas ao sagrado matrimónio.
A quem estou enganando, afinal? Tudo o que desejo é cair por terra diante do
nosso padre e implorar-lhe o perdão pelo meu crime. Se Cristo perdoou as
meretrizes, por que não seria eu merecedor de sua dádiva? Jamais toquei numa
mulher com lascívia até conhecer... Conhecer... Seu nome causa-me vergonha. A sua
lembrança revira-me o íntimo. Mesmo após tudo o que aconteceu, como ainda posso
sentir-me atraído por... Por aquilo? Tende piedade de mim, senhor, pois
pequei contra o senhor, contra a minha fé e contra mim mesmo! A punição
pela minha luxúria não pode ser outra além do abraço eterno das chamas
infernais! Arderei por toda eternidade, supliciado por demónios ávidos em
violar as almas à mercê dos seus mais abjectos caprichos!» In Rochett Tavares, Anakagawea,
1975, Bahia, Luís Eduardo Magalhães, Grupo Artístico Editora, 2014, CDD
869-938-699-3.
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