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Como foi feita a aprendizagem da ciência náutica?
«(…) Assim, a cada passo, a cada avanço, seguia-se inevitavelmente um novo
obstáculo, um novo desafio que era necessário vencer, o que, por vezes,
obrigava a um abrandamento das viagens. Um dos mais importantes foi a chegada
dos navios ao equador, região onde a Estrela Polar não é mais visível. O regimento
da Polar deixava de ser útil. Foi necessário aperfeiçoar e adaptar os
conhecimentos astronómicos que a Europa já dispunha: o regimento do Sol,
ou seja, a determinação da latitude pela sua observação ao meio-dia, utilizando
para isso um outro instrumento, o
astrolábio e tábuas, com os dados da declinação solar ao longo do
ano. O aperfeiçoamento e crescente rigor da navegação astronómica eram
simultaneamente causa e consequência do contacto, da prática e do avanço para
sul. No reinado de João II, este processo foi acelerado, com a exploração do
Atlântico Sul e a preparação das condições técnicas necessárias para a viagem à
Índia, que veio a ocorrer já no reinado de Manuel I.
O impulso dos Descobrimentos foi dado por um homem ou por um colectivo?
Podia ser uma questão escolar: quem construiu a grande pirâmide do Egipto?
Os manuais afirmam que foi um faraó da 4.ª dinastia, Kéops, também chamado
Khufu, mas há muito que foi lançada uma pergunta alternativa: o faraó ou os
muitos milhares de escravos e de trabalhadores anónimos? Este exemplo simples
tem múltiplas variantes interrogativas: o nazismo foi obra de um líder e de um
punhado de seguidores ou de todo um povo? Cortés conquistou o império Asteca ou
foram os seus aliados tlaxcalas que venceram os inimigos? A relação entre o
indivíduo, geralmente uma figura política central, e o colectivo, uma massa
indistinta de gente cujo nome não ficou registado, sempre foi um dos problemas
mais importantes na História; não apenas da História-passado, mas da
História-conhecimento. Estas questões estão também presentes na história dos descobrimentos
portugueses, envolvendo o protagonismo e a responsabilidade pelo arranque e
impulso da expansão. Existiria, de alguma forma, uma vontade dos portugueses,
enquanto povo, para se lançarem na aventura marítima, ou esse impulso ficou a
dever-se, sobretudo, à acção determinada de um indivíduo? Ou a iniciativa terá partido
de um determinado grupo específico ou classe social? De um modo grosseiro, pode
afirmar-se que a visão deste problema oscila entre dois extremos, que revelam
concepções opostas da História e dos seus motores: primeiro, uma visão
tradicional que tendia a detectar e a concentrar a atenção nos protagonistas,
nas figuras de topo e nos heróis, fossem eles o infante Henrique, o seu irmão
Pedro ou João II, tomando as várias épocas da História como cenários de fundo
onde se movem os grandes vultos.
Como afirma um autor do século passado, desencadeados, pelos guias, os
grandes movimentos ideológicos, doutrinários, espirituais, as multidões
movem-se, com todas as suas virtudes e defeitos, produzindo heróis e santos,
feitos sublimes e misérias confrangedoras. No outro extremo, e em reacção a
estas abordagens meramente biográficas e desligadas da realidade social, está a
procura das motivações económicas, dos conflitos sociais e dos interesses de
classes, sejam da nobreza terra-tenente ou da burguesia urbana. Aqui, a importância
das figuras dilui-se e estas não passam de receptáculos da vontade de forças
sociais mais profundas. Eis a conclusão: a luta entre a burguesia [...] a
nobreza feudal pelo domínio do estado, com a força impulsionadora dominante e
decisiva duma burguesia estrategicamente na ofensiva [...] é o verdadeiro motor
da história do século XV pelo menos e, no caso, da história da expansão. Estas
abordagens opostas reflectiram-se, como noutras temáticas, no ensino. Quem frequentou
a escola antes de 1974 aprendia nomes, datas e factos; posteriormente, a
atenção centrou-se em conceitos abrangentes, em problemas sociais e em
condições materiais, técnicas e mentais. Comparando os manuais escolares, é com
alguma dificuldade que se percebe estar-se perante a mesma época e o mesmo
mundo. Assim, no antigo 7.º ano dos liceus falava-se na vocação marítima de
Portugal, e no espírito de cruzada, e citavam-se os nomes e as datas mais importantes
das explorações henriquinas. Duas décadas mais tarde, e para o ano escolar
equivalente, 11.º ano, os capítulos referem civilização material e mentalidade,
progressos técnicos e domínio do espaço ou a nova representação cartográfica da
Terra; a expansão portuguesa está diluída nas grandes transformações europeias,
não há datas exactas e figuram poucos nomes, o do infante Henrique, entre
outros, está omisso». In Paulo Jorge Sousa Pinto, Os Portugueses
Descobriram a Austrália? Porque foi Conquistada Ceuta? O arranque dos
Descobrimentos, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-626-498-7.
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