segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

O Sonho do Celta. Mario Vargas Llosa. «A petição de clemência pode ver-se comprometida. Esta manhã, nalguns jornais, já há protestos, inconfidências, rumores sobre o conteúdo dos seus diários. A opinião pública…»

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O Congo
«(…) Agora tornou-se difícil, talvez impossível, ter êxito, repetiu o estagiário. Estava pálido, continha a sua indignação e Roger adivinhava sob a pele esbranquiçada da sua tez a sua caveira. Pressentiu que, atrás de si, o xerife sorria. De que é que está a falar? O senhor Gavan Duffy estava optimista relativamente à petição. O que é que aconteceu para que mudasse de opinião? Os seus diários, soletrou o jovem, com outra careta de desagrado. Baixara a voz e Roger tinha alguma dificuldade em ouvi-lo. Foi a Scotland Yard que os descobriu, na sua casa de Ebury Street. Fez uma longa pausa, esperando que Roger dissesse alguma coisa. Mas como este tinha emudecido, deu rédea solta à sua indignação e franziu a boca: como é que pôde ser tão insensato, homem de Deus?, falava com uma lentidão que tornava mais patente a sua raiva. Como é que pôde pôr em tinta e papel semelhantes coisas, homem de Deus? E, se o fez, corno é que não tomou a precaução elementar de destruir aqueles diários antes de se pôr a conspirar contra o Império Britânico? É um insulto este imberbe chamar-me homem de Deus, pensou Roger. Era um mal-educado, porque ele tinha pelo menos o dobro da idade daquele rapazola amaneirado. Circulam agora por todo o lado fragmentos desses diários, acrescentou o estagiário, mais sereno, embora sempre desagradado, agora sem olhar: para ele. No Almirantado, o porta-voz do ministro, o capitão-de-mar-e-guerra Reginald Hail em pessoa, entregou cópias a dezenas de jornalistas. Estão por toda a Londres. No Parlamento, na Câmara dos Lordes, nos clubes liberais e conservadores, nas redacções e nas igrejas. Não se fala de outra coisa na cidade. Roger não dizia nada. Não se mexia. Tinha, outra vez, aquela estranha sensação que se havia apoderado dele muitas vezes nos últimos meses, desde aquela manhã cinzenta e chuvosa de Abril de 1916 em que, transido de frio, fora detido entre as ruínas do Forte McKenna, no Sul da Irlanda: não se tratava dele, era doutro que falavam, doutro a quem aconteciam aquelas coisas. Já sei que a sua vida privada não é um assunto meu, nem do senhor Gavan Duffy, nem de ninguém, acrescentou o jovem estagiário, esforçando-se por baixar a cólera que impregnava a sua voz. Trata-se de um assunto estritamente profissional. O senhor Gavan Duffy, quis pô-lo ao corrente da situação. E preveni-lo. A petição de clemência pode ver-se comprometida. Esta manhã, nalguns jornais, já há protestos, inconfidências, rumores sobre o conteúdo dos seus diários. A opinião pública favorável à petição poderá ver-se afectada. Uma mera suposição, claro. O senhor Gavan Duffy mantê-lo-á informado. Deseja que lhe transmita alguma mensagem?
O prisioneiro negou, com um movimento quase imperceptível da cabeça. No mesmo instante, girou sobre si mesmo, encarando a porta do parlatório. O xerife deu uma indicação com a sua cara bochechuda ao guarda. Este correu o pesado ferrolho e a porta abriu-se. O regresso à cela pareceu-lhe interminável. Durante o percurso pelo longo corredor de pétreas paredes de tijolos vermelhos enegrecidos teve a sensação de que a qualquer momento tropeçaria e cairia de bruços sobre aquelas pedras húmidas e não voltaria a levantar-se. Ao chegar à porta metálica da cela, recordou: no dia em que o trouxeram para a prisão de Pentonville, o xerife disse-lhe que todos os réus que ocuparam aquela cela, sem excepção, tinham acabado no patíbulo». In Mario Vargas Llosa, O Sonho do Celta, 2010, tradução de Cristina Rodriguez, Quetzal Editores, Lisboa, 2010, ISBN 978-972-564-919-0.

Cortesia de QuetzalE/JDACT