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O Congo
«(…) Agora tornou-se difícil, talvez
impossível, ter êxito, repetiu o estagiário. Estava pálido, continha a sua
indignação e Roger adivinhava sob a pele esbranquiçada da sua tez a sua
caveira. Pressentiu que, atrás de si, o xerife sorria. De que é que está a
falar? O senhor Gavan Duffy estava optimista relativamente à petição. O que é
que aconteceu para que mudasse de opinião? Os seus diários, soletrou o jovem,
com outra careta de desagrado. Baixara a voz e Roger tinha alguma dificuldade
em ouvi-lo. Foi a Scotland Yard que os descobriu, na sua casa de Ebury Street. Fez
uma longa pausa, esperando que Roger dissesse alguma coisa. Mas como este tinha
emudecido, deu rédea solta à sua indignação e franziu a boca: como é que pôde
ser tão insensato, homem de Deus?, falava com uma lentidão que tornava mais
patente a sua raiva. Como é que pôde pôr em tinta e papel semelhantes coisas,
homem de Deus? E, se o fez, corno é que não tomou a precaução elementar de
destruir aqueles diários antes de se pôr a conspirar contra o Império
Britânico? É um insulto este imberbe chamar-me homem de Deus, pensou
Roger. Era um mal-educado, porque ele tinha pelo menos o dobro da idade daquele
rapazola amaneirado. Circulam agora por todo o lado fragmentos desses diários, acrescentou
o estagiário, mais sereno, embora sempre desagradado, agora sem olhar: para
ele. No Almirantado, o porta-voz do ministro, o capitão-de-mar-e-guerra
Reginald Hail em pessoa, entregou cópias a dezenas de jornalistas. Estão por
toda a Londres. No Parlamento, na Câmara dos Lordes, nos clubes liberais e
conservadores, nas redacções e nas igrejas. Não se fala de outra coisa na
cidade. Roger não dizia nada. Não se mexia. Tinha, outra vez, aquela estranha
sensação que se havia apoderado dele muitas vezes nos últimos meses, desde
aquela manhã cinzenta e chuvosa de Abril de 1916 em que, transido de frio, fora
detido entre as ruínas do Forte McKenna, no Sul da Irlanda: não se tratava
dele, era doutro que falavam, doutro a quem aconteciam aquelas coisas. Já sei
que a sua vida privada não é um assunto meu, nem do senhor Gavan Duffy, nem de
ninguém, acrescentou o jovem estagiário, esforçando-se por baixar a cólera que
impregnava a sua voz. Trata-se de um assunto estritamente profissional. O senhor
Gavan Duffy, quis pô-lo ao corrente da situação. E preveni-lo. A petição de clemência
pode ver-se comprometida. Esta manhã, nalguns jornais, já há protestos,
inconfidências, rumores sobre o conteúdo dos seus diários. A opinião pública
favorável à petição poderá ver-se afectada. Uma mera suposição, claro. O senhor
Gavan Duffy mantê-lo-á informado. Deseja que lhe transmita alguma mensagem?
O prisioneiro negou, com um movimento
quase imperceptível da cabeça. No mesmo instante, girou sobre si mesmo,
encarando a porta do parlatório. O xerife deu uma indicação com a sua cara
bochechuda ao guarda. Este correu o pesado ferrolho e a porta abriu-se. O
regresso à cela pareceu-lhe interminável. Durante o percurso pelo longo
corredor de pétreas paredes de tijolos vermelhos enegrecidos teve a sensação de
que a qualquer momento tropeçaria e cairia de bruços sobre aquelas pedras
húmidas e não voltaria a levantar-se. Ao chegar à porta metálica da cela,
recordou: no dia em que o trouxeram para a prisão de Pentonville, o xerife
disse-lhe que todos os réus que ocuparam aquela cela, sem excepção, tinham
acabado no patíbulo». In Mario Vargas Llosa, O Sonho do Celta,
2010, tradução de Cristina Rodriguez, Quetzal Editores, Lisboa, 2010, ISBN
978-972-564-919-0.
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