sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O Reino dos Sonhos. Exército Negro. Santiago Garcia Clairac. «Cada vez que acordo de manhã, depois de dormir profundamente, repito a mesma frase em voz alta para saber onde estou. Os meus sonhos são tão intensos que me custa acordar»

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A Fundação. Arquimaes, o sábio dos sábios
«(…) Os soldados, ao verem a audácia do seu senhor, decidiram obedecer à ordem e obrigaram os criados a colocar todos os pertences dentro das carroças. Em pouco tempo, o laboratório ficou quase vazio e todos os livros e pergaminhos que o alquimista havia preenchido com toda a paciência ao longo de vários meses ficaram em poder do conde. As fórmulas de medicamentos e outras descobertas acabavam de passar para mãos ambiciosas. Pela primeira vez, o alquimista temeu o que Morfidio pudesse fazer com a fórmula secreta e um calafrio percorreu todo o seu corpo. Só de pensar que tai coisa pudesse acontecer, fazia-o estremecer. Matai estes homens! Não quero testemunhas! Vociferou Morfidio, ao mesmo tempo que trespassava o corpo de um criado com a sua longa espada. E atirai os seus corpos ao rio! Os soldados lançaram-se sobre os outros dois ajudantes, que nem sequer ofereceram qualquer resistência, trespassaram-nos com as suas armas aguçadas e acabaram com as suas vidas em poucos segundos. Aterrorizado, o servidor mais idoso tentou fugir pelas escadas abaixo, até ao exterior, mas Cromell partiu em sua perseguição, dando gritos e soltando ameaças e imprecações. Voltou alguns segundos depois, com a lâmina da espada manchada de sangue. Tinha isto entre as roupas, explicou ao seu senhor. É um pergaminho. Morfidio desdobrou o documento e observou-o com atenção. Ora vejamos, agora temos outra prova a nosso favor! Quatro soldados obrigaram o sábio e o seu ajudante ferido com gravidade a subirem para uma carroça. Trataram-nos com dureza, esquecendo-se de que se tratava de um homem de paz afligido pela violenta situação que acabava de sofrer e de um jovem ferido com bastante gravidade que pusera a sua vida em perigo por ajudar o seu mestre. Os guerreiros eram dignos servidores de um amo selvático e cruel que não se detinha diante de nenhum obstáculo para conseguir os seus desejos. As ratazanas e os cães fizeram bem em afastar-se do seu caminho.
Voltemos ao castelo. É de noite e estas terras são perigosas na escuridão!, ordenou o conde Morfidio, prestando atenção aos uivos selvagens que chegavam aos seus ouvidos a partir das trevas. Já não temos mais nada que fazer aqui... Queimai este lugar! Não quero que fique nem rasto deste infecto santuário de bruxaria! Arquimaes observou como vários homens, comandados pelo capitão Cromell, cumpriam a ordem e ateavam fogo ao laboratório que tanto esforço lhe havia custado a erguer. Viu como todo o seu trabalho era pasto das chamas e se transformava em fumo diante dos seus olhos. A indignação pelo assalto e pela matança que acabavam de sofrer remeteu-o ao mais absoluto silêncio, ao mesmo tempo que o desespero e a raiva iam crescendo no seu interior. O sábio abraçou-se a Arturo e pressionou a sua ferida com força, mas não pôde evitar que umas lágrimas assomassem aos seus olhos quando os soldados arremessaram os corpos dos seus ajudantes ao rio. Depois, a caravana pôs-se em marcha em direcção ao castelo de Morfidio, deixando atrás de si uma coluna de fumo que se elevava até ao céu e se confundia com as nuvens que o encobriam.
Nenhuma das janelas das casas vizinhas se abrira, ninguém saíra para a rua acorrendo em seu auxílio e a povoação encontrava-se mergulhada na mais absoluta escuridão, como se estivesse de luto. Ninguém se atreveu a enfrentar o conde Morfidio para defender o alquimista que, em mais de uma ocasião, já havia salvado a vida de muitos doentes ou feridos. Enquanto a caravana se afastava, um homem de pequena estatura, olhos salientes e grandes orelhas, que havia permanecido oculto por entre a espessura do bosque circundante e que havia observado a cena com atenção, montou no seu cavalo e dirigiu-se rumo ao castelo do rei Benicius. O conde Morfidio não imaginava que a sua infâmia iria desencadear uma série de terríveis acontecimentos que mudariam a história e criariam uma extraordinária lenda.

O louco dos livros
Cada vez que acordo de manhã, depois de dormir profundamente, repito a mesma frase em voz alta para saber onde estou. Os meus sonhos são tão intensos que me custa acordar e tenho problemas em situar-me na realidade, na minha verdadeira realidade. Esta noite tive outra vez um sonho repleto de aventuras extraordinárias, com soldados, castelos medievais, magos, alquimistas... O mais preocupante é que sofro estas alucinações com tanta força que me levanto esgotado, como se as tivesse vivido de verdade. É terrível..., não sei o que posso fazer para evitá-las. Às vezes, julgo que estou a ficar louco. Talvez isso aconteça porque quando uma pessoa está a ponto de completar catorze anos tem paranóias que não consegue controlar. Enquanto mantenho uma dura batalha com as minhas recordações fantásticas, entro no duche, abro a torneira e espero que a água tépida me ajude a sair do mundo da ficção e a entrar na realidade. A água ajuda-me a passar da Idade Média para a actualidade». In Santiago Garcia Clairac, O Reino dos Sonhos, O Exército Negro, 2006, tradução de Ana Maria Silva, Planeta Manuscritos, Lisboa, 2009, ISBN 978-989-657-020-0.

Cortesia de PlanetaM/JDACT