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III Fragmento
«(…) Hora em que prostitutas entram nos cabarés para se despirem e
depois se vestirem distantes do que fazem, é a hora em que, neste lugar, eu sei
que não sou eu mas ignoro quem eu seja corpo que tudo une dando e recebendo e
aumentando o dom de dar pelo próprio dom da doação e sei que qualquer coisa se
abre à evidência de que fomos criados para que nos criássemos, que para nos
fazermos fomos feitos e que os homens não nascem mas se fazem, a cada instante
se fazem e nisso está a liberdade deles, não em fazer o que se quer, mas o que
quer o ser, o que cada um é e não sabemos o que é mas sabemos que é e no poema emerge
em cada verso, no furioso puro apelo do poeta a quem vazaram olhos para melhor
cantar este poder da humanochimpanzaica condição mais conhecida por pipapalacaquígrafo homo
sapiens, descoberta naqueles casos em que a ciência fabiotética atenua as partes
melódicas da prognóetica reminiscência aliás bicanforada, perdão minha senhora
mas a moeda é falsa. são horas. chego ao quartel-general do grupo, vejo Kerstin
logo, olho num relance a cave toda, abafada e funda cheia de gente que desertou
do sol e vive nas trevas, atravesso o espaço livre para dançar, paro no meio do
grupo mudo. sento-me em cima duma mesa suja e Growinski interroga-me exabrupto:
que fazes na vida?: pintura e política. cabelo crescido, bigode à Pancho Villa,
alta estatura, olhos castanhos sob sobrancelhas escuras, queixo grosso, nariz
duro, lábios muito finos, as mãos grandes e rudes, a camisola comprida. está de
pé a falar, os olhos fixos, faz o elogio de Picesso num tom didáctico empolado.
a orquestra toca free jazz, Kerstin cola o corpo ao meu quando dançamos,
passo-lhe os braços pela cintura, os outros olham-nos alheios, têm um certo desprezo
uns pelos outros e também por si mesmos. gosto de Kerstin de berrante blusa e
cabelos rebeldes. a canção acabou, regressamos à mesa, há una nuvem de fumo que
as luzes inundam de tons azuis, acendo o meu cachimbo, talvez assim não sinta
tanto o cheiro a cinza. atmosfera morna, ar pesado, as paredes abafam, da sombra
da cave salta o saxofone, indistintas as mãos movem-se, rostos pálidos olhos
apagados pares unidos no mesmo medo informe, idêntico o ritmo repete-se
idêntico, os mesmos passos, tudo no lodo lento de rastos, a música morre, pares
dispersam, a pista de madeira está vazia na sua cor sem brilho. calma construída
de secretos ruídos num levedar da massa de instantes sufocados, uma lufada de
ar, alguma coisa vai mudar, um grito de trompete acorda o torpor da cave. onda
de sons desfeita em nada, corpos de pé apanhados na vaga, agitam-se convulsos,
dança possessa de si mesma. Kerstin insiste em sentar-se sobre os meus joelhos,
sobre o meu sexo, beija-me a barba, Growinski está contando que se suicida
quando conhecer a beleza porque depois desse instante nada pode ser belo, nada
há a esperar deste mundo de merda, Anders recita os seus satíricobscenos poemas
de momento: na primavera incharam-se os
jardins de novas flores e velhos pederastas de novos estupores e velhas
madrastas e vieram todos os novos e velhos insectos infectos e não infectos até
um novo modelo de barata feito na américa só sucata e outros engraçados bichos
habituais como os pardais os cardeais os comensais os generais e ainda mais
dois animais para os tanques trutas para os bancos prostitutas e este lugar
animado é muito frequentado usado e abusado por sopeiras e magalas e peixeiras
e marechalas, outro, cujo nome esqueci, um tipo de olhos vítreos, começa do
seu canto cantando: conheci por acaso um gajo no teatro tinha um ar vago muito
pálido cabelo louro-palha e à saída vi-o entrar num largo carro negro estofado
de negro com motorista negro fardado de negro mas de luvas brancas mais tarde
encontrei-o vezes várias no café o mesmo olhar desamparado até que uma tarde
veio inesperado sentar-se à minha mesa como se tivesse contas a dar-me começou
por dizer que se chamava Krauss e era rico mas apesar disso sempre fora tímido
e ao contrário do que se julgava a timidez aumentou com a idade davam-lhe
passeios estadas no estrangeiro arranjavam-lhe amigas festas farras tudo em vão
a tudo tinha horror tudo lhe era estranho vivia aterrorizado por um peso
tremendo e um perigo pendente…» In Almeida Faria, Rumor Branco, Editorial
Caminho, 4ª edição, Lisboa, 1992, ISBN 972-21-0746-1.
Cortesia de Caminho/JDACT