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Dor que enlouquece
«(…)
Uma grande lâmpada de bronze punha os seus reflexos de luz dourada na figura da
Virgem com o seu Jesus pequenino ao colo, Mãe e Filho numa expressão de júbilo
e ridente fulgor. Foi até ela, a tremer, a pobre esfarrapada; ajoelhou-se
fervorosamente, a acalentar a filha, e pôs no painel um olhar mortificado, numa
súplica em que as lágrimas davam o dobro das palavras. Senhora, acudi-me!
Ninguém me ouviu, ninguém me pôde socorrer! Escutai-me vós! Socorrei-me,
Senhora! Mãe divina fostes, mas também eu quero à minha filha, como vós,
Senhora, ao vosso filho. Sofreu, sofrestes com ele, e mataram-no; mas o vosso
era Deus, e a esta, coitadinha, sou eu que a deixo morrer! Senhora, talvez
nunca sofresse fome o vosso pequenino Jesus, por se não terem secado para ele
os vossos seios como secaram os meus! A criancinha estrebuchou-lhe nos braços
como uma avezita agonizante e soltou um grito dolorido. A esfarrapada ergueu-se
de repente, a tremer doidamente, e deu uns passos torcidos para que a luz da
lâmpada lhe iluminasse melhor o rosto da pequenina. Estás a esfriar! Filha! Filha! Olha
para mim!, rouquejou ao beijá-la, a tactear-lhe a cara, em convulsões de epiléctica.
Mas a
filha já não a ouvia. Estava morta. Morta pela fome. A mulher sacudiu-se em
soluços e pôs-se numa correria doida pelo terreiro da Sé com o cadáver da
pequenina erguido nos braços, trementes como se fossem de uma octogenária. E no
céu de profundo azul brilhou um fulgor intenso de estrelas, no alheamento e na
indiferença daquela dor de mãe a envolver-se em desvario de loucura! A
enlouquecida sentou-se no degrau do portal a regougar uma trova de acalentar
crianças e a embalar nos braços o corpo hirto da filha. Vibraram de repente
naquele lúgubre silêncio vozes altas de gente que vinha da Porta de Ferro a
correr. Gentes, despertai! Boas novas chegaram! Erguei-vos e dai graças a Deus!
E com as vozes altas, alvoroçadas, ressoavam nos ares as marteladas das
aldravas, revoava um sussurro de gente surpreendida, um ranger de portas que se
abriam e um ruído de adufas que se levantavam.
Entrou
um grupo de homens no terreiro da Sé. Vinha diante deles um galeote com uma
acha de pinho embreada, acesa em guisa de archote, a esfumar de negro aquela
frouxa penumbra das estrelas e a projectar os seus clarões vermelhos na fachada
vetusta daquele grande templo. Por
Deus, que chegaram boas notícias! Que notícias são?, inquiriram os
estremunhados, assomando às portas com as candeias de luz na mão. São notícias
de Nuno Álvares, o jovem campeão?, perguntavam. Quereis ver que deu nova
arremetida contra os castelãos e venceu outra batalha? Eu já sonhei com ele
três noites a fio, a entrar por Castela adentro, ao lado do senhor S. Jorge,
com o seu bacinete de ouro e a sua lança de prata! E que tinha levado à
escalada os muros de Badalhouce (assim
chamavam a Badajoz.; parece que foi fundada pelos mouros com a denominação de
Baladelaixe, que os nossos antigos mudaram para Badalhouce). Não vos
deiteis a adivinhar, gente endrominada, que o caso foi outro. Dizei qual. Contai
o que houve. Falai depressa. Dizei, insistiram muitas vozes. Lançou ferro
(atracou) em Cascais a armada que veio do Porto a socorrer-nos, esclareceu um
dos recém-chegados. Pois
Santa Maria seja bendita e que viva quem nos vem ajudar. Viva! Viva! E o senhor dom Bispo
que mande abrir as portas da Sé, e os senhores cónegos que mandem pôr luzes nos
altares, para que Deus nos ampare! E quem trouxe tal notícia? Um homem bom do
Porto, mercador rico, de rijas febras e destemida gana para o mar, que pelo
escuro da noite fugiu de Cascais num batelzito e, por entre a armada inimiga,
se atreveu a cá vir trazer-nos a boa notícia! Já esteve a falar com o Mestre,
informou outro dos avisadores, referindo-se ao Mestre da Ordem Militar de Avis,
filho bastardo de el-rei Pedro I. E com ele veio também aquele destemido
fidalgo jovem de Riba-Douro, que foi o mais belo pajem da rainha comborça (mulher que tem amores ou vive com um homem
casado. Assim chamavam à rainha dona Leonor Teles) e o mais animoso na
guerra do ano passado. Não sei quem seja! Ora! Nem Lisboa conhece outro mais afoito
de alma. É aquele jovem de vinte anos que mandou desafiar o Condestabre de
Castela. Ah! Esse
então todos nós sabemos quem é. É claro que se sabe. É Ruy Vasconcelos, da
melhor nobreza de Riba-Douro.
Morrem
por ele as mulheres novas. E dizem que no paço real por ele se perdeu certa
dama linda como as estrelas. E olhai que nunca mais se lhe soube o paradeiro! E
enquanto iam falando assim, em grupos ou de porta para porta, a multidão dos
alvoroçados aumentava de instante para instante; as luzes das candeias
brilhavam pelas adufas como pirilampos e voejava pelos ares um rumor mais
intenso de passos e de vozes. Entretanto, no portal da Sé, alheada de tudo, a
enlouquecida mãe, a quem a filha morrera, soluçava as orações com ela deitada
no regaço. A multidão podia lá ouvi-la! Ninguém reparara naquela mulher nova,
enrodilhada em farrapos de brocado, endoidecida no drama da maior dor humana,
toda mirrada na sombra enorme da igreja. E
ela também absolutamente alheia a todo aquele alvoroço, como se ali a tivessem
cegado as suas próprias lágrimas e de tudo tivesse ensurdecido no estonteamento
daquela mágoa inexcedível e sem remédio! Gentes, aí vem o Mestre, o Defensor, o que um dia será rei!,
gritou à frente da multidão, numa voz dominadora, que se sobrepunha a todas as
outras, um homem alto, espadaúdo, exemplar admirável dessa raça de plebeus que
havia então, de consciência lavada e ânimo intemerato, para falarem alto fosse
a quem fosse, e para morrerem a peito descoberto pelo seu crer e pela sua
coragem. Era o tanoeiro (tanoeiro ou
toneleiro é um artesão dedicado ao fabrico de barris, pipas ou tonéis para
embalar, conservar e transportar mercadorias, principalmente líquidos)
Afonso Eanes, o chamado Juiz do Povo", um revolucionário dos dias
turbulentos que seguiram à morte do rei Fernando I». In António Campos Júnior, A Ala dos
Namorados, 1905, Luso Livros, Uma nova forma de ler, Formato digital, 2013.
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