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O primeiro voo
«(…) Centenas de navios congregados
por el-rei João, o primeiro, o que vencera a batalha real contra os castelhanos
havia trinta anos. Aquele mar de velas que flutuava sobre o oceano azul
representava a primeira tentativa da Coroa portuguesa para voar para lá do seu
espaço natural. E eles, escudeiros ao serviço do rei e dos infantes, também queriam
demonstrar a sua valia no campo de honra, de arma na mão. Os jovens desmontaram,
sem tirar os olhos do espectáculo impressionante da armada real. Pedro Sá foi o
primeiro a quebrar o silêncio: Álvaro, estás muito calado. O amigo continuou a fitar
o horizonte de sobrolho carregado. Deixa-o, disse Tristão Coutinho. Ainda está agoniado
por ter perdido a sua amiga. Álvaro deitou-lhe um olhar furioso. Os outros
sorriram, trocistas. Poucos dias depois da sua primeira experiência com Filipa Andrade,
regressara à casa dela e oferecera-lhe a possibilidade de abandonar o seu mester
a troco de se tornar ajudante. de uma das cozinheiras da corte. Filipa tinha a esperança
de arrancar um bastardo ao fidalgote, pelo que aceitara a proposta. Haviam passado
umas tardes e noites agradáveis, embora a rapariga nunca se tivesse sentido empolgada.
Ao cabo de quatro meses, ainda não emprenhara, e, farta do serviço da cozinha,
tinha partido na garupa de um cavaleiro da Casa do infante Henrique que vivia em
Sátão. Álvaro ficou desconsolado, e tornara-se alvo das brincadeiras dos jovens
escudeiros da corte.
O olhar severo de Tristão Coutinho conteve
os companheiros. O jovem algarvio pegou numa cabaça presa à sela e convidou os companheiros
a experimentar uma bebida forte. Vede o que fazemos por estas bandas com os medronhos.
Amigo, não peças para ver; deixa-nos beber. A conversa correu, animada, entre os
aspirantes a guerreiros; apenas Álvaro permaneceu macambúzio. Iniciaram a descida
por uma vereda que serpenteava pela encosta virada para o Alentejo, virados para
poente, tendo pela frente, ao longe, a vila de Aljezur. Estamos cansados de te
ouvir, Álvaro. Cala-te um pouco, amigo, brincou Pedro Sá. Todos se riram, menos
o visado e o Coutinho. Jorge Távora disse em voz baixa, mas audível: é cornudo por
insuficiência. Os olhos de Álvaro chisparam e, descontrolado, lançou-se sobre o
provocador. Antes que os outros pudessem intervir, já os dois rebolavam pela encosta.
Foram travados por uns penedos, que os impediram de cair no abismo. Erguendo-se,
com uma orelha ensanguentada e um corte profundo na testa, Álvaro pegou no seu punhal
e cravou-o primeiro no tórax do adversário, depois na jugular, antes de lançar
o corpo do Távora pela encosta a pique. Enfrentando os outros, que o olhavam incrédulos,
exclamou: também querem provar da minha insuficiência? Tristão Coutinho e o primo
do alcaide tentaram acalmá-lo, enquanto os outros dois companheiros observavam o
corpo de Jorge Távora, tombado sobre uns penedos muito abaixo, em local inacessível
a partir daquela vereda. Quando iniciaram a descida da serra já tinham estabelecido
um pacto: informariam que o Távora fora descuidado e que pusera o pé numa rocha
solta tendo caído por um precipício, o que tornara impossível o resgate do seu corpo.
Álvaro ainda tentara recuperá-lo, no entanto, correra risco de vida e ferira-se.
Enquanto trotavam em direcção a Silves, Pedro Sá e Fernando Góis comentavam em
voz baixa a rapidez e a ferocidade da reacção de Álvaro à provocação do infeliz
Jorge Távora. Deus nos guarde de termos de o enfrentar. Álvaro sabia que ficava
nas mãos das testemunhas do incidente. Admirava-se pela forma como eliminara o ofensor,
eficazmente e com ferocidade, e a sensação de ter derrubado quem o ofendera agradava-lhe.
No entanto, isso pouco lhe importava, pois já decidira que morreria na aventura
d’el-rei João I». In
João Paulo O. Costa, O Fio do Tempo, 2009, Temas e Debates, Círculo de
Leitores, 2011, ISBN 978-989-644-135-7.
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