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(Escre)ver-me
«nunca
escrevi
sou
apenas
um tradutor de silêncios
a vida
tatuou-me
nos olhos
janelas
em
que me transcrevo e apago
sou
um soldado
que se
apaixona
pelo
inimigo que vai matar»
Fevereiro
1985
Protesto contra a lentidão das fontes
«Vazaram-se
as luas da savana
ossadas
pálidas emigraram
dos
corpos para o chão
ajoelharam-se
os bois
exaustos
de carregarem o sol
Escureceram
as horas
nomeadas
pela fome
extinguiu-se
o sangue da terra
esvaiu-se
o leite
num
coágulo de saudade
Restam
troncos
sustendo
gemidos
mães
oblíquas sonhando migalhas
mendigando
crenças
para
salvar os filhos já quase terrestres
Quem
protege estes meninos
feitos
da chuva que não veio?
Que
casa lhes havemos de dar?
Amanhã
quando
se entornarem os cântaros do céu
as
aves voltarão a roçar a lua
e as
cigarras de novo espalharão seu canto
Mas
dos meninos
talhados
a golpes de poeira
quantos
restarão
para
saudar o amanhecer dos frutos?
Junho
1984
Poemas
de Mia Couto,
in ‘Raiz de Orvalho’
Depósito
Legal B-4777-2009
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