jdact
A
Direcção do Olhar
«(…)
Era por causa desse olhar revirado para o alto que a maioria das pessoas, as
que têm tendências pragmáticas e por isso predominam no planeta, o escutava e
olhava sem grandes inquirições e concluía, apenas, que ele era um homem
fugidio. Havia um homem que olhava sempre os outros nos olhos, directo e
cândido, e que com essa arma decidira dedicar-se ao negócio. O homem de olhar
fugidio queria vender o carro, já bastante gasto, para comprar um novo, e este
homem pragmático, um construtor em vias de ascensão, pensava comprar o carro do
homem de olhar fugidio: seria a primeira viatura da sua empresa recém-formada.
Idealizava já pintado na porta o logotipo que ele e a sua mulher tinham
inventado num serão. Claro que não lhe chamavam logotipo, porque não conheciam
a palavra, chamavam-lhe umas letras jeitosas, e achavam que as suas letras
jeitosas competiam com quaisquer umas, das que apareciam por aí, na televisão
e nos cartazes da publicidade. Este construtor e a mulher eram daquelas pessoas
que não reviram os olhos para lado nenhum, têm sempre a certeza de tudo porque,
na sua pragmática visão, o que existe está à vista e o que não se vê não existe.
Calhava bem um carro assim, pensavam, já um pouco estafado mas bem conservado, para
carro de serviço.
Mas o
homem pragmático acabou por desistir da compra. O homem não olha nos olhos,
confidenciara à mulher, tem aquela mania esquisita de revirar os olhos para cima
como se quisesse fugir para qualquer lado, não confio em gente assim; acho que ele
esconde alguma coisa. Talvez o carro tivesse tido algum desastre sério e tenha o
eixo torcido, ou o próprio chassis todo empenado, quem sabe? E o homem que revirava
os olhos acabou por vender o carro muito mal, a um negociante de automóveis que
imediatamente o vendeu pelo dobro do preço. Confirmou assim, este homem em busca
de inspiração mas pouco inspirado nos detalhes práticos, uma das firmes opiniões
que tinha sobre si próprio e sobre o mundo: que não tinha sorte nem jeito para os
negócios, e que o mundo pertencia aos que sabem enganar os outros. Não soube nunca
que o construtor em vias de ascensão acabara por comprar, a um homem de olhar directo
e sorriso franco, um carro em mau estado e mais caro do que o seu.
As
frases sussurradas
O silêncio
das tardes de Verão, no campo, a seguir ao almoço: só o ruído das cigarras, cá
fora, só o ruído duma varejeira, na casa. Ouve-se a brisa, mais leve que seja, tanto
é o silêncio. Pára o dia, pára o tempo, porque é aí, nessa hora silente, que se
entreabre a porta para outro mundo. Acordou. Sentiu o calor, o irresistível
cheiro da terra molhada. O cheiro de acção de graças de todos os minúsculos seres
pelas primeiras chuvas de Verão. Não podia haver engano, estava no meio de Setembro.
Não conseguia perceber porque acordava naquela época, em Setembro, entre o calor
e a chuva, entre o silêncio e os sons pesadamente discretos. Não seria mais eficiente
acordar logo em Dezembro, na altura das festas e das grandes hipocrisias, e desfazer
logo aí, directamente, o nó górdio de todas as tortuosidades que cumpria desatar?
Deixou
de lado esses pensamentos inúteis após breves instantes. Tinha muito pouca autocomplacência,
muito pouca tendência para a especulação tecida sobre a ignorância e a falta de
dados, pouca paciência para o que teria sido se e outros condicionais. Se
acordava ali, naquele anteontem do problema, alguma razão havia. Tinha que procurar
as pistas que o conduziriam da antecâmara da causa à cozinha suculenta e complexa
das consequências, por isso mesmo tinha que estar atento ao objectivo ante seus
olhos e não se deixar cegar por conjecturas. De Setembro partia, em direcção a
Dezembro, esse fio do silêncio. Tão visível no tempo quente, colava-se ao chão e
tornava-se subterrâneo à medida que o ar esfriava, até se tornar companheiro da
folha podre, da semente germinando. À superfície, os seres humanos, perdido o conchego
da temperatura amena, contrapunham-se ao silêncio e ao descanso da natureza em
crescente gorjeio, em crescente ruído. Este era o fio ostensivo que saía do hipnótico
zumbido da varejeira». In Maria Isabel Barreno, Os Sensos Incomuns,
1993, colecção Campo da Palavra, Grande Prémio do Conto, Editorial Caminho,
2008, ISBN 978-972-210-886-7.
Cortesia
ECaminho/JDACT