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O
arco e a flecha. Antemanhã, Dezembro de 1080
«(…)
Os perfumes da floresta envolviam-no, misturando-se estranhamente com a dor
pulsante no peito. Havia um aroma a rosmaninho e alecrim, que era estonteante e
simultaneamente perturbador. Como se, de algum modo, houvesse na sua memória
uma lembrança que o associasse à ideia da morte. Fechou os olhos. Sentia a
haste da flecha cravada no peito. Balançava ao sabor dos solavancos, como se de
um junco se tratasse. Era áspera e fria, e a consciência de que podia causar-lhe
a morte era tão intensa que se sobrepunha à dor física. Pela primeira vez,
deu-se conta de como era pungente a sua vontade de viver, apesar das
contrariedades da vida! Mas o desejo esvaiu-se-lhe quando voltou a perder os
sentidos. Na verdade, como pudera ser ingénuo ao acreditar que havia anjos com
rosto de mulher ou com corpos ostensivamente femininos. Era ela e estava ali! Tinha-o
seguido no interior da igreja. Uma estranha luminosidade parecia irradiar da
sua presença. Talvez fosse o seu sorriso tão insinuante, quente e possessivo que
não conseguia ignorá-1o. Sentiu o calor subir-lhe pelos artelhos até se cravar
na zona genital. Um nó de desejo formou-se-lhe na boca do estômago, subindo depois
até à garganta. O que... quereis?, balbuciou, temeroso de que e voz não lhe
obedecesse.
Mesmo
depois de se ter ouvido, ainda duvidou que fosse a sua: parecia-lhe estranha e
alheia, como provinda de um outro que não ele. As palavras pareceram soar como pequenos
guizos pela nave da igreja. Subitamente sentia-se acometido por um estranho frio,
feito de receio e inquietação. Nada de mais, irmão. Posso ajoelhar-me ao vosso lado
e rezar convosco? A voz era suave como algodão, mas nem por isso o sossegou. Pelo
contrário, intensificou o arrepio que se lhe cravara na nuca. N... S... Sim, foi
apenas capaz de dizer. Sentia-se tão atrapalhado que era incapaz de elaborar um
raciocínio coerente. Meu Deus, pediu. Dai-me o dom da palavra, para que repudie
esta rapariga e resista à tentação. Deus pareceu não o escutar, ou então escarnecia
da sua fraqueza, através dela. Não ou sim? Decidi-vos. Ouviu-a desafiá-lo e pôde
perceber, apesar da penumbra reinante, que sorria provocadoramente. Sim.
A rapariga
ajoelhou-se então e por momentos pareceu rezar. Ele, por mais que o desejasse, não
conseguia abstrair-se da sua presença. Do seu cheiro selvagem. Fechou os olhos
com força, desejoso de ser capaz de viajar de novo pelo mesmo cenário maravilhoso
de há pouco. Mas então, eis que a mão da mulher procurou a sua. Sentiu-a quente
e ansiosa e, apesar de se lhe querer opôr, não foi capaz. A mulher segurou-lhe
na mão e conduziu-o, primeiro ao seio, cheio e morno, depois pela pele da
barriga até ao ventre, e mais abaixo. A mulher soltou um suspiro. (Ou teria sido
ele?) Sentiu-a tão húmida que não conseguiu conter-se. O seu sexo estava tão
duro que lhe doía e parecia saltar sob o manto, como um estranho animal selvagem,
desejoso de se libertar. Deu graças pela escuridão que os envolvia. Viu-se de novo
no mesmo lugar maravilhoso e, aflito, olhou em volta procurando uma vez mais a
mãe. Desta feita, encontrava-se no meio de uma praça repleta de gente, mas não conseguia
divisar entre tantos desconhecidos o rosto por que ansiava. Indiferente à sua ansiedade,
todos pareciam entretidos com as suas preocupações quotidianas, graves ou
comezinhas, mas que lhe eram estranhas e alheias. Sentiu-se acometido de grande
desânimo. Foi então que, surgindo do meio da multidão, viu avançar aquela que
era o anjo dos seus sonhos e que, sorrindo, lhe disse: estou aqui, meu filho. A
paz entrou no seu coração. Mas eis que de repente o rosto conhecido se transformou
noutro, também belo, mas estranho. Uns lábios rubros entreabriram-se para
proferir: um dia, também tu estarás aqui! Que significado teriam aquelas
palavras? E que sítio era aquele? Seria o Paraíso? Ou apenas um lugar terreno,
semelhante a tantos que desde a mais tenra meninice ouvia serem evocados pela
voz de trovadores, bufarinheiros, peregrinos e viajantes?» In Emílio Miranda, 1089, O Livro
Perdido das Origens de Portugal, Marcador Editora, 2015, ISBN
978-989-754-141-4.
Cortesia
de MarcadorE/JDACT