quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

O Livro Perdido das Origens de Portugal. 1089. Emílio Miranda. «O que... quereis?, balbuciou, temeroso de que e voz não lhe obedecesse. ... parecia-lhe estranha e alheia, como provinda de um outro que não ele»

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O arco e a flecha. Antemanhã, Dezembro de 1080
«(…) Os perfumes da floresta envolviam-no, misturando-se estranhamente com a dor pulsante no peito. Havia um aroma a rosmaninho e alecrim, que era estonteante e simultaneamente perturbador. Como se, de algum modo, houvesse na sua memória uma lembrança que o associasse à ideia da morte. Fechou os olhos. Sentia a haste da flecha cravada no peito. Balançava ao sabor dos solavancos, como se de um junco se tratasse. Era áspera e fria, e a consciência de que podia causar-lhe a morte era tão intensa que se sobrepunha à dor física. Pela primeira vez, deu-se conta de como era pungente a sua vontade de viver, apesar das contrariedades da vida! Mas o desejo esvaiu-se-lhe quando voltou a perder os sentidos. Na verdade, como pudera ser ingénuo ao acreditar que havia anjos com rosto de mulher ou com corpos ostensivamente femininos. Era ela e estava ali! Tinha-o seguido no interior da igreja. Uma estranha luminosidade parecia irradiar da sua presença. Talvez fosse o seu sorriso tão insinuante, quente e possessivo que não conseguia ignorá-1o. Sentiu o calor subir-lhe pelos artelhos até se cravar na zona genital. Um nó de desejo formou-se-lhe na boca do estômago, subindo depois até à garganta. O que... quereis?, balbuciou, temeroso de que e voz não lhe obedecesse.
Mesmo depois de se ter ouvido, ainda duvidou que fosse a sua: parecia-lhe estranha e alheia, como provinda de um outro que não ele. As palavras pareceram soar como pequenos guizos pela nave da igreja. Subitamente sentia-se acometido por um estranho frio, feito de receio e inquietação. Nada de mais, irmão. Posso ajoelhar-me ao vosso lado e rezar convosco? A voz era suave como algodão, mas nem por isso o sossegou. Pelo contrário, intensificou o arrepio que se lhe cravara na nuca. N... S... Sim, foi apenas capaz de dizer. Sentia-se tão atrapalhado que era incapaz de elaborar um raciocínio coerente. Meu Deus, pediu. Dai-me o dom da palavra, para que repudie esta rapariga e resista à tentação. Deus pareceu não o escutar, ou então escarnecia da sua fraqueza, através dela. Não ou sim? Decidi-vos. Ouviu-a desafiá-lo e pôde perceber, apesar da penumbra reinante, que sorria provocadoramente. Sim.
A rapariga ajoelhou-se então e por momentos pareceu rezar. Ele, por mais que o desejasse, não conseguia abstrair-se da sua presença. Do seu cheiro selvagem. Fechou os olhos com força, desejoso de ser capaz de viajar de novo pelo mesmo cenário maravilhoso de há pouco. Mas então, eis que a mão da mulher procurou a sua. Sentiu-a quente e ansiosa e, apesar de se lhe querer opôr, não foi capaz. A mulher segurou-lhe na mão e conduziu-o, primeiro ao seio, cheio e morno, depois pela pele da barriga até ao ventre, e mais abaixo. A mulher soltou um suspiro. (Ou teria sido ele?) Sentiu-a tão húmida que não conseguiu conter-se. O seu sexo estava tão duro que lhe doía e parecia saltar sob o manto, como um estranho animal selvagem, desejoso de se libertar. Deu graças pela escuridão que os envolvia. Viu-se de novo no mesmo lugar maravilhoso e, aflito, olhou em volta procurando uma vez mais a mãe. Desta feita, encontrava-se no meio de uma praça repleta de gente, mas não conseguia divisar entre tantos desconhecidos o rosto por que ansiava. Indiferente à sua ansiedade, todos pareciam entretidos com as suas preocupações quotidianas, graves ou comezinhas, mas que lhe eram estranhas e alheias. Sentiu-se acometido de grande desânimo. Foi então que, surgindo do meio da multidão, viu avançar aquela que era o anjo dos seus sonhos e que, sorrindo, lhe disse: estou aqui, meu filho. A paz entrou no seu coração. Mas eis que de repente o rosto conhecido se transformou noutro, também belo, mas estranho. Uns lábios rubros entreabriram-se para proferir: um dia, também tu estarás aqui! Que significado teriam aquelas palavras? E que sítio era aquele? Seria o Paraíso? Ou apenas um lugar terreno, semelhante a tantos que desde a mais tenra meninice ouvia serem evocados pela voz de trovadores, bufarinheiros, peregrinos e viajantes?» In Emílio Miranda, 1089, O Livro Perdido das Origens de Portugal, Marcador Editora, 2015, ISBN 978-989-754-141-4.

Cortesia de MarcadorE/JDACT