«(…) Quanto ao número de cativos trazidos para o reino,
Azurara promete referi-lo mais adiante, como com efeito vem a fazer no fim da
obra, mas abrangendo então a mais os anos que vão até ao fim de 1448. Daqui é
lícito inferir que daquela data por diante, isto é, de 1446, qualquer
circunstância marcava uma época nova na obra do infante Henrique, e no que
expressamente tocava aos descobrimentos. Se rebuscarmos nos restantes
capítulos, não encontramos, todavia, nada justifique esse balanço final
referido àquela data. Notemos já que, fazendo o reconto de todos os navios que
foram às novas terras descobertas, em vez de 51 encontramos 53. Mas, como
Azurara se refere expressamente a caravelas, tirando da soma pelo menos uma
barca, dois varinéis, dois navios e uma fusta, aquele número fica reduzido a
47. Além disso também na cronologia das viagens até aquela data se diria que há
soluções de continuidade. De 1443 até ao começo de 1446, o relato da Crónica passa duma viagem para
outra sem especificar a data claramente, dizendo, tentando aquele ano,
ou referindo o dia e o mês, e ainda factos sincrónicos, como se anteriormente o
ano ficasse declarado.
Em cronista tão minucioso aquele erro de soma e esta
obscuridade cronológica, quando é certo que nos outros passos do relato ele se
mostra por demais solícito em fazer notar as passagens dum ano a outro, dão
direito a supor que exista qualquer lacuna na série das viagens até aquela data
realizadas. Mais adiante veremos se há motivos sérios para crê-lo. Analisemos agora
a parte da Crónica que imediatamente
continua o balanço das caravelas enviadas e das léguas percorridas. Observará,
que imediatamente a seguir a este capítulo em Azurara implicitamente fecha uma
época navegadora, ele começa a falar sucessivamente do descobrimento das Canárias,
Madeira, Porto Santo e Deserta, e se refere a algumas ilhas dos Açores. Dir-se
-ia assim, relacionando o estranho seguimento duns e dos capítulos restantes,
que uma nova direcção nos Descobrimentos, quer dizer, para ocidente do
Atlântico, fora para o autor a razão divisória oculta entre as duas épocas
navegadoras. Mas é certo que todas as ilhas a que se refere Azurara foram
descobertas antes de 1446 e desde o fim desse ano até ao fim de 1448, último a
cujos feitos se refere a Crónica,
a darmos crédito a Zurara, por tal forma diminuiu a actividade descobridora,
que o cronista refere unicamente três capítulos a esses dois anos, sem que
qualquer das expedições relatadas seja propriamente de descobrimento. Poder-se-ia
assim alegrar que a ausência de avanços exploradores bastava a justificar
aquele balanço de Azurara. Mas ainda depois disso, e antes daqueles três
capítulos, isto é, durante 1446, ele relata a segunda viagem de Álvaro
Fernandes, cujo êxito explorador, como nota o cronista, excedeu em extensão e
alcance todas as anteriores. Há, pois, a acrescentar ao mistério daquela
divisão essa inexplicável pouquidade nos feitos relatados durante os últimos
dois anos a que se refere a Crónica».
In Jaime
Cortesão, A Expansão dos Portugueses no Período Henriquino, Portugália Editora,
Lisboa 1965.
Cortesia de PortugáliaE/JDACT