O Algarismo e o Número
«(…) O
Outono tingira de ocre-amarelento os dourados campos de trigo de Chartres.
Empoleirado sobre o andaime, o mestre João de Ruão apontava a um dos oficiais
da obra certos detalhes que deviam, ser corrigidos numa das abóbadas da nave maior
da catedral. A velha catedral de Chartres tinha ardido na quente noite de 10
para 11 de Junho de 1794. Do
terrível incêndio só se salvara a cripta, respeitada na nova obra, na qual se encontrava
uma das mais preciosas relíquias daquele tempo: a camisa que a virgem Maria usava sobre o seu sagrado corpo imaculado no
dia em que deu à luz o seu filho Jesus Cristo. Quando as chamas se apagaram
e as brasas do incêndio diminuíram de intensidade, os consternados habitantes de
Chartres puderam entrar nas ruínas da sua catedral e descobriram o feito milagroso
da conservação intacta da sua mais venerada relíquia. Em seguida correu por toda
a cidade o rumor de que aquele era um claro sinal que a virgem enviava a Charles.
sem dúvida, com aquele indício, a mãe do Redentor queria dizer que era necessário
construir uma nova catedral em sua honra, um grande templo que estivesse à altura
da mulher que tinha dado à luz o filho de Deus; o novo templo teria de ser o da
luz, da claridade e do calor. Chartres não era uma cidade demasiado povoada, nem
demasiado importante, nem sequer era demasiado rica. Não podia competir com a grandiosidade
da populosa Paris, nem com a magnificência da orgulhosa Reims, onde eram coroados
os reis de França, nem com a riqueza estratégica de Amiens, mas estava rodeada por
uma imensa planície pela qual se estendiam fertilíssimos campos até para lá do que
a vista alcançava, e os seus cereais aprovisionavam meia França de pão e rações.
Na Primavera, os campos semeados de trigo, cevada e aveia reverdeciam como um
interminável tapete verde que, em princípios de Junho, começavam a mudar para tons
de dourados e amarelos.
A cidade
de Chartres não tinha o prestígio nem a fama das primeiras cidades de França,
mas, no alto da colina onde estava assente, guardava um mistério como nenhuma outra
cidade podia ostentar: existia a crença de que em todo o terreno em que se erguia
a catedral houvera desde antes que existisse memória no género humano um santuário
sagrado em que os homens e as mulheres daquela região adoravam um deus peculiar.
Não se tratava de um deus qualquer; não era mais um dessa longa centena de divindades
pagãs que o cristianismo havia já séculos conseguira arrincoar e converter em vagas
recordações ou em demónios; mas sim o rutilante deus da luz, a divindade representada
pelo mesmíssimo sol glorioso que todos os amanheceres se inundava de luminosidade
e triunfava, dia após dia, sobre a escuridão e as trevas. Uma antiquíssima
tradição sustentava que o próprio lugar onde se erguia a catedral era o mais
sagrado da terra, uma espécie de coração palpitante em pleno centro do mundo, um
ónfalos onde confluíam poderosíssimas forças telúricas e assombrosas correntes
mistagógicas. Na altura em que ardeu a velha catedral de Chartres, havia
várias décadas que em França se estava a impor uma nova forma de construir os grandiosos
templos catedralícios, as imponentes basílicas e as faustosas igrejas abaciais.
Foi Suger, o influente abade do mosteiro de São Dionísio, quem, em meados do século
XII, proclamou a nova doutrina do triunfo da luz e a necessidade de construir os
templos cristãos tendo em conta o valor da claridade face à penumbra. Numa das
suas obras deixou escrita uma mensagem cifrada que só alguns iniciados eram capazes
de interpretar; o abade Suger dizia que brilhantemente reluzia aquilo que multiplicava
o esplendor e que brilhante era o trabalho nobre através do qual resplandecia a
nova luz.
Para Suger, Cristo era a nova luz que iluminara o mundo após
uma longa época de trevas, o sol triunfante e revivido que alumiava a alma dos seres
humanos e guiava os seus corações até à verdade. E como as igrejas eram a casa
de Deus, cada templo devia ser a moradia da luz. O abade de São Dionísio ansiava
poder captar a luz, ou pelo menos construir um templo em que a luz fosse a protagonista
e tudo banhasse. Com as velhas técnicas da arquitectura isso não era possível.
Para poder suportar as pesadas abóbadas de pedra sem que viessem
estrepitosamente abaixo, primeiro era necessário levantar paredes grossas e maciças
nas quais se podiam abrir grandes vãos por onde a luz penetrasse em caudais e iluminasse
o interior do templo como Suger ansiava. Para o abade de São Dionísio era
necessário, imprescindível, abrir as paredes e rasgá-las de cima a baixo com grandes
janelas para através delas captar a luz do Sol e deixar que esta inundasse os santuários
cristãos. Suger indicou aos seus mestres de obra que procurassem as soluções
técnicas necessárias à sua demanda de luz, e os mestres responderam ao repto com
eficácia». In José Luís Corral, El Número de Deus, 2004, O Número de Deus, O
Segredo das Catedrais Góticas, tradução de Carlos Romão, Planeta Editora,
Lisboa, 2006, ISBN 972-731-185-7.
Cortesia de Planeta Editora/JDACT