sábado, 9 de janeiro de 2016

O Hipopótamo de Deus. José Tolentino Mendonça. «Na história dramática de Caim e Abel é-nos dito que o projecto ético, o projecto fraterno, não é uma imposição do sangue, pois o próprio sangue se pode voltar contra o seu sangue»

jdact

«Quando as perguntas que trazemos valem mais do que as respostas provisórias que encontramos»
  
A Leste do Paraíso
«(…) Em relação à história de Abel e Caim, o primeiro fratricídio, convém verificar a origem etimológica dos nomes dos personagens. Abel provém do hebraico hebel, que significa sopro ou vapor; Caim deriva de qenar, que quer dizer comprar. Abel é o nómada, o transumante, o pastor; Caim é o sedentário, o agricultor, o que compra e vende, o dono da terra. Nesta história, com uma evidente configuração etiológica, temos a memória de uma transição violenta entre as sociedades transumantes e as sociedades de tipo agrário. E temos, sobretudo, a narrativa da fraternidade descrita como um imperativo ético (mesmo que violável), e não simplesmente como um dado da natureza. Na história dramática de Caim e Abel é-nos dito que o projecto ético, o projecto fraterno, não é uma imposição do sangue, pois o próprio sangue se pode voltar contra o seu sangue. Os irmãos podem até matar-se. Mas a fraternidade é uma decisão e um projecto ao alcance do Homem. É curioso o diálogo que Deus tem com Caim, no capítulo 4 do Livro do Génesis: … ao fim de algum tempo, Caim apresentou ao Senhor uma oferta dos frutos da terra; por seu lado, Abel ofereceu primogénitos do seu rebanho e as suas gorduras; o Senhor olhou com agrado para Abel e para a sua oferta, mas não olhou com agrado para Caim nem para a sua oferta; Caim ficou muito irritado e o rosto transtornou-se. O Senhor disse a Caim: … porque estás zangado e de rosto abatido? Se procederes bem, certamente voltarás a erguer o rosto; se procederes mal, o pecado deitar-se-á à tua porta e andará a espreitar-te; cuidado, pois ele tem muita inclinação para ti, mas tu deves / podes (timshel) dominá-lo.
O belíssimo romance de John Steinbeck, A Leste do Paraíso, pega nesta palavra que l)eus dirige a Caim: … timshel, tu deves / podes. O final da primeira parte do romance desenvolve uma pesquisa talmúdica sobre o sentido desta expressão. O verbo hebraico timshel é traduzido, nas Bíblias mais correntes, por tu deves, mas John Steinbeck, partindo da argumentação rabínica, propõe que se leia tu podes. E desenvolve esta ideia em algumas páginas extraordinárias. Ao Homem em confronto com o Mal, transtornado a ponto de eliminar o seu próprio irmão, Deus não diz: vou retirar-te a liberdade, vou condicionar-te para que isso não mais aconteça. Antes afirma: tu podes vencer o Mal. O Mal aparece como um desafio e, quando se leem estes textos bíblicos, nomeadamente os das origens, percebemos que há complexidade. Não somos colocados perante uma moral codificada, mas no interior dinâmico de uma moral narrativa. O Bem e o Mal não são uma inevitabilidade, mas constituem decisões éticas. E perguntamo-nos: como pode o desgostado Caim não matar Abel, se lhe dedica uma inveja mortífera, se sente o despeito, se todos os seus direitos de filho mais velho acabam por ser relativizados por uma preferência aparentemente caprichosa de Deus? Tudo lhe dá razão, é verdade, mas a razão de Caim não constitui um direito de eliminar o irmão, porque Deus lhe diz uma palavra inesperada: tu podes (timshel) dominar o mal». In José Tolentino Mendonça, O Hipopótamo de Deus, Paulinas Editora, Prior O Hipopótamo de Deus. José Tolentino Mendonça. Prior Velho, 2013, ISBN 978-989-673-325-4.

Cortesia PEditoras/JDACT