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O
enviado
«Que
bem pensado, disse o inquisidor. Confessionários nas ruas para que as pessoas possam,
a qualquer momento, aliviar as suas consciências. Não são confessionários,
respondeu o Guia do Tempo. São caixas do multibanco. Sítios onde as pessoas vêm
levantar dinheiro. O inquisidor admirou-se muito. E dão assim dinheiro às pessoas?
Elas têm um número da sua conta bancária, um número secreto. Só lhes dão dinheiro
se antes o depositaram. O Guia tentava explicar mas tomava-se tudo muito confuso.
Haviam sido três a ser enviados para desmalhar as circunstâncias conducentes ao
holocausto final da humanidade. Os outros haviam-se espalhado por épocas diversas,
a este Guia coubera a delicada missão de levar um inquisidor três séculos e meio
para diante do seu tempo dito natural, em breve visita.
Achara-se
necessário interceptar a primeira versão do trajecto de uma lista de figuras,
entre elas um inquisidor e um capitalista, e fora cuidadosamente escolhida a forma
de juntar duas personagens numa só. Era uma espécie de salvação concentrada, não
dos próprios envolvidos, mas dos outros, através deles. Ao princípio o Guia pudera
controlar as coisas sem problemas. Convencera o inquisidor que era um anjo, e que
o levava a visitar outros mundos, extraordinárias revelações divinas para os servos
escolhidos. O bom aspecto do Guia, aliás rigorosamente programado, com todos os
adereços da imagem humana sobre os anjos, e a vaidade do inquisidor tinham definitivamente
tomado esta versão dos acontecimentos altamente credível para o referido inquisidor,
após umas brevíssimas suspeitas sobre tentações do demónio e bruxarias dos seus
inimigos e vítimas, estes dois conjuntos largamente coincidindo, escusado será dizê-lo.
O inquisidor
partira de coração jubiloso na leve cápsula, tão transparente que mal se via e ele
a tomara por um halo de santidade. Sentira o ligeiro transtorno da viagem como
uma aproximação do poder divino, o Guia tivera que ir buscar, a um futuro plausível,
uma aperfeiçoada cápsula de viajar no tempo, única maneira de transportar o seu
pesado e opaco convidado. Partira então o inquisidor julgando que ficava e sobre
ele se abatia a graça divina na forma de um vago enjoo e de uns apressados riscos
cinzentos preenchendo o seu cérebro. Dissera três vezes Senhor eu não sou digno,
e tendo-se-lhe então aclarado a visão e o pensamento, sossegado o estômago numa
sensação de vazio quase agradável, achou suas preces eficazes, sentiu-se acolhido
pelos favores divinos e digno desses favores.
Haviam
aterrado nas alvoroçadas ruas duma grande cidade dos finais do século XX. E o inquisidor
maravilhara-se vendo uma, duas pessoas viradas, outra mais além, em secreta humildade,
para aquelas caixas incrustadas nas paredes. Ignorara os prédios altos, os carros,
os autocarros, os trajes; seleccionara aquela visão reconfortante, reconhecida:
confessionários, repetia. O Guia desistiu de explicações confusas, tudo poderia
servir aos seus fins. Resumiu: Deus sabe tudo. Não têm os apóstolos e seus
sucessores o poder de dar a absolvição após confissão dos pecados? Hoje em dia,
e porque o mundo mudou, a absolvição vem na forma de dinheiro. O inquisidor pensou.
Pensou muito. Havia uma relação, ele os bens dos culpados? Tantos tesouros
acumulara a igreja que agora... Agora? No céu? Diz-me, pediu, onde estamos nós
afinal? Onde achas que estamos? No céu, sem dúvida... Embora eu pensasse... Onde
estão os anjos cantando? Por aí, respondeu o Guia, evasivo. O inquisidor apressou-se
a fugir das dúvidas antes que estas o tomassem indigno das visões esplêndidas. Sim,
ali podia viver-se a outra face da moeda: o dinheiro acumulado era devolvido aos
bons para que eles pudessem gozar o conforto. Transportaste-me ao céu, sim, eu
creio, disse». In Maria Isabel Barreno, O Enviado (Contos), Editorial Caminho, Lisboa,
1991, ISBN 972-210-574-4.
Cortesia
de ECaminho/JDACT