sábado, 9 de janeiro de 2016

Ficções. Jorge Luís Borges. «Numa noite do Islão que se chama a Noite das Noites abrem-se de par em par as portas do céu e é mais doce a água nos cântaros; se essas portas se abrissem, não sentiria o que nesse tarde senti»

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O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam (1941). Tlön, Uqbar, Orbis Tertius
«(…) Nessa noite fomos à Biblioteca Nacional. Em vão demos que fazer a atlas, catálogos, anuários de sociedades geográficas, memórias de viajantes e historiadores: ninguém tinha estado alguma ver em Uqbar. O índice geral da enciclopédia de Bioy também não registava esse nome. No dia seguinte, Carlos Mastronardi (a quem eu contara o facto) numa livraria de Corrientes y Talcahuano reparou nas lombadas pretas e douradas da Anglo-Arnerican Cyclopaedia... Entrou e consultou o volume XXVI. Naturalmente, não deu com o menor indício de Uqbar. Alguma lembrança limitada e minguante de Herbert Ashe, engenheiro dos caminhos-de-ferro do Sul, deve persistir no hotel de Adrogué, no meio das efusivas madressilvas e do fundo ilusório dos espelhos. Em vida sofreu de irrealidade, como tantos ingleses; morto, não é sequer o fantasma que já era então. Era alto e apático, e a sua canosa barba rectangular havia sido ruiva. Creio que era viúvo, sem filhos. De tantos em tantos anos ia a Inglaterra: visitar (julgo eu por umas fotografias que nos mostrou) um relógio de sol e uns carvalhos. O meu pai estreitara com ele (o verbo é excessivo) uma dessas amizades inglesas que começam por excluir as confidências e que muito em breve omitem o diálogo. Costumavam exercer um intercâmbio de livros e de jornais; costumavam defrontar-se no xadrez, taciturnamente... Lembro-me dele no corredor do hotel, com um livro de matemática na mão, fitando às vezes as cores irrecuperáveis do céu. Uma tarde, falámos do sistema duodecimal de numeração (em que o doze se escreve 10). Ashe disse que estava precisamente a transferir não sei que tabelas duodecimais para sexagesimais (em que sessenta se escreve 10). Acrescentou que esse trabalho lhe fora encomendado por um norueguês: no Rio Grande do Sul. Há oito anos que o conhecíamos e nunca tinha mencionado a sua estada nessa região... Falámos da vida pastoril, dos capangas, da etimologia brasileira da nossa palavra gaucho (que alguns velhos orientais ainda pronunciam gaúcho) e nada mais se disse, Deus me perdoe, sobre as funções duodecimais. Em Setembro de 1937 (não estávamos nós no hotel) Herbert Ashe morreu da ruptura de um aneurisma. Dias antes, recebera do Brasil um pacote selado e registado. Era um livro em oitavo maior. Ashe deixou-o no bar, onde, meses depois, o encontrei. Pus-me a folheá-lo e senti uma ligeira vertigem de espanto que não descreverei, porque esta não é a história das minhas emoções, mas sim de Uqbar e Tlön e Orbis Tertius. Numa noite do Islão que se chama a Noite das Noites abrem-se de par em par as portas do céu e é mais doce a água nos cântaros; se essas portas se abrissem, não sentiria o que nesse tarde senti. O livro estava redigido em inglês e compunham-no 1001 páginas.
Na amarela lombada de couro li estas curiosas palavras que o ante-rosto repeti a: A First Encycbpaedia of Tlön, volume XI. Hlaer to Jangr Não havia indicação de data nem de lugar. Na primeira página e numa folha de papel de seda que cobria uma das estampas a cores estava impressa uma oval azul com esta inscrição: Orbis Tertius. Dois anos antes eu descobrira num tomo de certa enciclopédia pirata uma sumária descrição de um falso país; agora fazia-me o acaso deparar com uma coisa mais preciosa e mais árdua. Agora tinha nas mãos um vasto fragmento metódico da história total de um planeta desconhecido, com as suas arquitecturas e as suas balbúrdias, com o pavor das suas mitologias e o rumor das suas línguas, com os seus imperadores e os seus mares, com os seus minerais e os seus pássaros e peixes, com a sua álgebra e o seu fogo, com a sua controvérsia teológica e metafísica. Tudo isto articulado, coerente, sem visível propósito doutrinário ou tom paródico». In Jorge Luís Borges, Ficções, tradução de Maria Kodama, 1989, Teorema, Colecção Mil Folhas, Público, Porto, 2003, ISBN 84-96075-62-1.

Cortesia Público/JDACT