Pic
de Soularac. Montes Sabarthés
(…) Um pilar de fogo em movimento, branco, dourado e
vermelho, vergando-se em todas as direcções, mudando constantemente de forma. Por
instinto, Alice ergue as mãos para proteger o rosto do calor intenso, embora
não consiga senti-lo. Pode ver rostos presos nas chamas que dançam, bocas
contorcidas em silenciosa agonia enquanto o fogo as acaricia e devora. Alice
tenta parar. Precisa parar. Os seus pés estão feridos e sangrando, a sua longa saia está molhada,
atrapalhando os seus movimentos, mas quem a persegue está logo atrás dela e
algo além de seu controle a está conduzindo para o abraço fatal do fogo. Ela não
tem outra escolha senão pular, para evitar ser consumida pelas chamas. Lança-se
no ar em espiral como uma coluna de fumaça, flutuando bem alto acima dos
amarelos e laranjas. O vento parece sustentá-la, liberando-a da terra. Alguém
está chamando o seu nome, uma voz de mulher, embora a pronúncia seja estranha. Alaïs.
Ela está segura. Livre.
Então sente a conhecida pressão de dedos frios nos seus
tornozelos, prendendo-a ao chão. Não, não são dedos, são correntes. Alice então
percebe que está segurando alguma coisa nas mãos, um livro, fechado por tiras
de couro. Entende que é aquilo que ele quer. Que eles querem. Ê a perda desse
livro que os deixa zangados. Se ao menos ela conseguisse falar, talvez pudesse
fazer um acordo. Mas sua cabeça está
vazia de palavras, e a sua boca é incapaz de falar. Ela debate-se, chuta
tentando escapar, mas está presa. A pressão inflexível nas suas pernas é forte
demais. À medida que é arrastada de volta para o fogo, ela começa a gritar, mas
tudo é silêncio. Ela grita de novo, sentindo a voz lutar bem dentro de si para
ser ouvida. Dessa vez, o som sai num jacto. Alice sente o mundo real voltar a
toda velocidade. Som, luz, cheiro, o gosto metálico do sangue na sua boca. Até
que, por uma fracção de segundo, ela pára, subitamente, envolta por um frio
translúcido. Não é o frio conhecido da caverna, mas algo diferente, intenso e
brilhante. Dentro dele, Alice consegue distinguir com dificuldade o turvo
contorno de um rosto, bonito, indistinto. A mesma voz torna a chamar seu nome.
Alaïs.
Chama pela última vez. É a voz de um amigo. Não de alguém
que lhe quer mal. Alice se esforça para abrir os olhos, sabendo que, se
conseguisse ver, entenderia. Não consegue. Não completamente.
O sonho começa a se dissipar, libertando-a. Hora de
acordar. Preciso acordar. Então ouve outra voz na sua cabeça, diferente da
primeira. A sensação retorna aos seus braços e pernas, os seus joelhos
esfolados ardendo e a sua pele arranhada e dolorida no ponto onde ela caiu.
Pode sentir alguém segurar o seu ombro com força, sacudindo-a de volta à vida. Alice!
Alice, acorde!
A
Cité na Colina. Carcassone. 1209
Alaïs acordou sobressaltada, arregalando os
olhos. O medo pulava
no seu peito como um passarinho preso numa rede que luta para se libertar. Ela
apertou as costelas com as mãos para sossegar o coração disparado. Por um
instante, não ficou nem dormindo nem acordada, como se alguma parte dela mesma
houvesse sido deixada para trás no sonho. Sentiu que flutuava, e olhava para si
mesma de uma grande altura, como as gárgulas de pedra que faziam caretas para
os passantes do telhado da catedral de Sant-Nasari. O quarto tornou a entrar em
foco. Ela estava sã e salva na sua própria cama, no Château Comtal.
Gradualmente, os seus olhos foram-se acostumando ao escuro. Estava a salvo das
pessoas magras, de olhos negros que a assombravam à noite, seus dedos afiados
arranhando-a e puxando-a. Elas não podem alcançar-me agora. A linguagem
esculpida nas pedras, mais imagens do que palavras, que nada significava para
ela, tudo se dissolveu como colunas de fumaça no ar outonal. O fogo também se
tinha apagado, deixando apenas uma lembrança na sua mente. Uma premonição? Ou
apenas um pesadelo?
Ela não tinha como saber. Tinha medo de saber. Alaïs estendeu a mão para as cortinas penduradas ao redor da cama,
como se ao tocar algo concreto ela própria fosse se sentir
menos transparente e abstrata. O tecido surrado, repleto da poeira e dos
cheiros conhecidos do castelo, reconfortou-a com a aspereza sob seus dedos». In Kate Mosse, O Labirinto Perdido,
Labyrinth, 2005, Publicações dom Quixote, 2006, ISBN 978-972-202-969-8.
Cortesia de PdomQuixote/JDACT