quarta-feira, 18 de setembro de 2019

O Labirinto Perdido. Kate Mosse. «Chama pela última vez. É a voz de um amigo. Não de alguém que lhe quer mal. Alice se esforça para abrir os olhos, sabendo que, se conseguisse ver, entenderia. Não consegue. Não completamente»

Cortesia de wikipedia e jdact

Pic de Soularac. Montes Sabarthés
(…) Um pilar de fogo em movimento, branco, dourado e vermelho, vergando-se em todas as direcções, mudando constantemente de forma. Por instinto, Alice ergue as mãos para proteger o rosto do calor intenso, embora não consiga senti-lo. Pode ver rostos presos nas chamas que dançam, bocas contorcidas em silenciosa agonia enquanto o fogo as acaricia e devora. Alice tenta parar. Precisa parar. Os seus pés estão feridos e sangrando, a sua longa saia está molhada, atrapalhando os seus movimentos, mas quem a persegue está logo atrás dela e algo além de seu controle a está conduzindo para o abraço fatal do fogo. Ela não tem outra escolha senão pular, para evitar ser consumida pelas chamas. Lança-se no ar em espiral como uma coluna de fumaça, flutuando bem alto acima dos amarelos e laranjas. O vento parece sustentá-la, liberando-a da terra. Alguém está chamando o seu nome, uma voz de mulher, embora a pronúncia seja estranha. Alaïs. Ela está segura. Livre.
Então sente a conhecida pressão de dedos frios nos seus tornozelos, prendendo-a ao chão. Não, não são dedos, são correntes. Alice então percebe que está segurando alguma coisa nas mãos, um livro, fechado por tiras de couro. Entende que é aquilo que ele quer. Que eles querem. Ê a perda desse livro que os deixa zangados. Se ao menos ela conseguisse falar, talvez pudesse fazer um acordo. Mas sua cabeça está vazia de palavras, e a sua boca é incapaz de falar. Ela debate-se, chuta tentando escapar, mas está presa. A pressão inflexível nas suas pernas é forte demais. À medida que é arrastada de volta para o fogo, ela começa a gritar, mas tudo é silêncio. Ela grita de novo, sentindo a voz lutar bem dentro de si para ser ouvida. Dessa vez, o som sai num jacto. Alice sente o mundo real voltar a toda velocidade. Som, luz, cheiro, o gosto metálico do sangue na sua boca. Até que, por uma fracção de segundo, ela pára, subitamente, envolta por um frio translúcido. Não é o frio conhecido da caverna, mas algo diferente, intenso e brilhante. Dentro dele, Alice consegue distinguir com dificuldade o turvo contorno de um rosto, bonito, indistinto. A mesma voz torna a chamar seu nome.
Alaïs.
Chama pela última vez. É a voz de um amigo. Não de alguém que lhe quer mal. Alice se esforça para abrir os olhos, sabendo que, se conseguisse ver, entenderia. Não consegue. Não completamente.
O sonho começa a se dissipar, libertando-a. Hora de acordar. Preciso acordar. Então ouve outra voz na sua cabeça, diferente da primeira. A sensação retorna aos seus braços e pernas, os seus joelhos esfolados ardendo e a sua pele arranhada e dolorida no ponto onde ela caiu. Pode sentir alguém segurar o seu ombro com força, sacudindo-a de volta à vida. Alice! Alice, acorde!

A Cité na Colina. Carcassone. 1209
Alaïs acordou sobressaltada, arregalando os olhos. O medo pulava no seu peito como um passarinho preso numa rede que luta para se libertar. Ela apertou as costelas com as mãos para sossegar o coração disparado. Por um instante, não ficou nem dormindo nem acordada, como se alguma parte dela mesma houvesse sido deixada para trás no sonho. Sentiu que flutuava, e olhava para si mesma de uma grande altura, como as gárgulas de pedra que faziam caretas para os passantes do telhado da catedral de Sant-Nasari. O quarto tornou a entrar em foco. Ela estava sã e salva na sua própria cama, no Château Comtal. Gradualmente, os seus olhos foram-se acostumando ao escuro. Estava a salvo das pessoas magras, de olhos negros que a assombravam à noite, seus dedos afiados arranhando-a e puxando-a. Elas não podem alcançar-me agora. A linguagem esculpida nas pedras, mais imagens do que palavras, que nada significava para ela, tudo se dissolveu como colunas de fumaça no ar outonal. O fogo também se tinha apagado, deixando apenas uma lembrança na sua mente. Uma premonição? Ou apenas um pesadelo?
Ela não tinha como saber. Tinha medo de saber. Alaïs estendeu a mão para as cortinas penduradas ao redor da cama, como se ao tocar algo concreto ela própria fosse se sentir menos transparente e abstrata. O tecido surrado, repleto da poeira e dos cheiros conhecidos do castelo, reconfortou-a com a aspereza sob seus dedos». In Kate Mosse, O Labirinto Perdido, Labyrinth, 2005, Publicações dom Quixote, 2006, ISBN 978-972-202-969-8.
                                                                              
Cortesia de PdomQuixote/JDACT