jdact
A
Letra Pitagórica
«(…) Eu ia pensativo. Não era a
primeira vez que eu pensava nas minhas mãos, as cotejava com as dos meus
companheiros, com as das outras pessoas. Dir-se-ia que alguma coisa lhes
rectificara, apurara e adoçara as linhas, havia nelas o que quer que fosse de
feminino. Quando me quedava em frente de uma galeria de retratos, por vezes
mais que os olhos e a expressão do rosto eram as mãos que me tomavam a atenção.
As minhas pareciam mãos de um retrato. Considerando que a velha cigana era
pessoa habituada a ver mãos de toda a maneira e feitio, não era de estranhar
que tivesse logo dado conta de que as minhas eram fora do normal. A sua
hesitação em ler a sina interpretava-a eu como o desejo de se adaptar a uma
situação que pretendia deitar-se a adivinhar. Como, porém, conservando-me
calado, lhe não dei qualquer espécie de lamiré, ela encontrou-se desasada. Não
cuidei mais do caso.
Chegámos a Tavira pelo fim da
tarde. Entrando as muralhas pelo Arco da Misericórdia dá-se com uma cidade
sossegada, pouco movimentada, e logo nos chama a atenção a substituição dos
terraços e açoteias, que doutras terras vizinhas são característica, pelo
telhado mourisco de quatro águas, as gelosias quase sempre fechadas, a
resguardar o recato das casas, a multidão de igrejas, que as há espalhadas por
toda a cidade. No porto fundeadas muitas embarcações vindas de países
estrangeiros, o grande porte a contrastar com os pequenos barcos dos
pescadores. Na arcada dos Paços do Concelho estavam já a desfazer as tendas da
feira e esse era o ponto da cidade em que, àquela hora, ainda havia algum
bulício e movimento. Procuramos o Convento de São Francisco e, quando o ostiário
abriu a porta, Diogo disse quem éramos e, depois de entregar as obediências
para o prior, frei Gaspar Conceição estava?... Que lhe trazia recado do
superior do convento de Évora. O ostiário foi dentro, demorou algum tanto e por
fim apareceu acompanhado de um frade muito velho. Reconheci-o logo, apesar das
mudanças da idade. Que me trazeis recado? Diogo apresentou-lhe uma carta selada
que o superior de Évora lhe encomendara entregasse a frei Gaspar. O frade
quebrou os selos, leu com atenção e, por momentos, ergueu para mim os olhos,
que logo baixou ao encontrar os meus. Dobrou os papéis e com um aberto sorriso
e um abraço paternal disse:
Sede bem-vindos, meus caríssimos
irmãos. Sua Paternidade, o prior, pede-me que vos dê agasalho. Vinde. Há duas
coisas que esperam o franciscano quando regressa do seu peregrinar. Água para
se lavar do pó e do suor dos caminhos e o conforto da cozinha. Eu vos guiarei.
Vinde.
Passada
meia hora, estávamos, limpos e frescos, na grande cozinha abobadada do
convento. Propositadamente, como quem depois do banho se esquece de apertar um
botão junto ao pescoço, eu deixava entrever o relicário de ouro. Frei Gaspar,
depois de nos pôr na mesa uma terrina com feijão, cenoura, couve e rodelas de
chouriço, um naco de pão de milho, azeitonas e um pichel de vinho tinto,
sentou-se em nossa frente. Perguntou-nos por onde tínhamos andado e nós respondíamos-lhe
circunstanciadamente. Via-se que conhecia em minúcia toda a região e tinha
gosto em saber a história de cada pedra antiga. Em breve, por esta afinidade de
gostos, só eu e ele conversávamos. Diogo levantou-se e perguntou se podia ir
breves instantes à capela. Frei Gaspar indicou-lhe por onde seguir para a
encontrar e ficamos sós. As pedras das paredes e da abóbada pareceram mais frias,
carregaram sobre nós o seu silêncio constrangido. Não sabia o vosso nome, disse
eu, mas lembro-me muito bem de vós. Teria eu nove anos, se tanto, e estava não
sei onde quando vós..., me falastes na relíquia... Calado, sem um gesto e com
ar muito entristecido, frei Gaspar deixava-me falar. Andei à vossa procura no
dia seguinte. Nunca mais vos vi ou de vós ouvi, até este momento... Depois
levaram-me para Setúbal... De Enxobregas..., murmurou. Mas estas coisas não são
para nelas se falar. Da outra vez disse-vos aquilo irreflectidamente. Que mal
havia nisso? Que significava aquele medalhão que eu trazia ao peito?» In
Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012,
ISBN 978-989-672-114-5.
Cortesia
de Difel/Alfaguara/JDACT