segunda-feira, 30 de setembro de 2019

A Casa do Pó. Fernando Campos. «Que mal havia nisso? Que significava aquele medalhão que eu trazia ao peito?»

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A Letra Pitagórica
«(…) Eu ia pensativo. Não era a primeira vez que eu pensava nas minhas mãos, as cotejava com as dos meus companheiros, com as das outras pessoas. Dir-se-ia que alguma coisa lhes rectificara, apurara e adoçara as linhas, havia nelas o que quer que fosse de feminino. Quando me quedava em frente de uma galeria de retratos, por vezes mais que os olhos e a expressão do rosto eram as mãos que me tomavam a atenção. As minhas pareciam mãos de um retrato. Considerando que a velha cigana era pessoa habituada a ver mãos de toda a maneira e feitio, não era de estranhar que tivesse logo dado conta de que as minhas eram fora do normal. A sua hesitação em ler a sina interpretava-a eu como o desejo de se adaptar a uma situação que pretendia deitar-se a adivinhar. Como, porém, conservando-me calado, lhe não dei qualquer espécie de lamiré, ela encontrou-se desasada. Não cuidei mais do caso.
Chegámos a Tavira pelo fim da tarde. Entrando as muralhas pelo Arco da Misericórdia dá-se com uma cidade sossegada, pouco movimentada, e logo nos chama a atenção a substituição dos terraços e açoteias, que doutras terras vizinhas são característica, pelo telhado mourisco de quatro águas, as gelosias quase sempre fechadas, a resguardar o recato das casas, a multidão de igrejas, que as há espalhadas por toda a cidade. No porto fundeadas muitas embarcações vindas de países estrangeiros, o grande porte a contrastar com os pequenos barcos dos pescadores. Na arcada dos Paços do Concelho estavam já a desfazer as tendas da feira e esse era o ponto da cidade em que, àquela hora, ainda havia algum bulício e movimento. Procuramos o Convento de São Francisco e, quando o ostiário abriu a porta, Diogo disse quem éramos e, depois de entregar as obediências para o prior, frei Gaspar Conceição estava?... Que lhe trazia recado do superior do convento de Évora. O ostiário foi dentro, demorou algum tanto e por fim apareceu acompanhado de um frade muito velho. Reconheci-o logo, apesar das mudanças da idade. Que me trazeis recado? Diogo apresentou-lhe uma carta selada que o superior de Évora lhe encomendara entregasse a frei Gaspar. O frade quebrou os selos, leu com atenção e, por momentos, ergueu para mim os olhos, que logo baixou ao encontrar os meus. Dobrou os papéis e com um aberto sorriso e um abraço paternal disse:

Sede bem-vindos, meus caríssimos irmãos. Sua Paternidade, o prior, pede-me que vos dê agasalho. Vinde. Há duas coisas que esperam o franciscano quando regressa do seu peregrinar. Água para se lavar do pó e do suor dos caminhos e o conforto da cozinha. Eu vos guiarei. Vinde.

Passada meia hora, estávamos, limpos e frescos, na grande cozinha abobadada do convento. Propositadamente, como quem depois do banho se esquece de apertar um botão junto ao pescoço, eu deixava entrever o relicário de ouro. Frei Gaspar, depois de nos pôr na mesa uma terrina com feijão, cenoura, couve e rodelas de chouriço, um naco de pão de milho, azeitonas e um pichel de vinho tinto, sentou-se em nossa frente. Perguntou-nos por onde tínhamos andado e nós respondíamos-lhe circunstanciadamente. Via-se que conhecia em minúcia toda a região e tinha gosto em saber a história de cada pedra antiga. Em breve, por esta afinidade de gostos, só eu e ele conversávamos. Diogo levantou-se e perguntou se podia ir breves instantes à capela. Frei Gaspar indicou-lhe por onde seguir para a encontrar e ficamos sós. As pedras das paredes e da abóbada pareceram mais frias, carregaram sobre nós o seu silêncio constrangido. Não sabia o vosso nome, disse eu, mas lembro-me muito bem de vós. Teria eu nove anos, se tanto, e estava não sei onde quando vós..., me falastes na relíquia... Calado, sem um gesto e com ar muito entristecido, frei Gaspar deixava-me falar. Andei à vossa procura no dia seguinte. Nunca mais vos vi ou de vós ouvi, até este momento... Depois levaram-me para Setúbal... De Enxobregas..., murmurou. Mas estas coisas não são para nelas se falar. Da outra vez disse-vos aquilo irreflectidamente. Que mal havia nisso? Que significava aquele medalhão que eu trazia ao peito?» In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT