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Servos
da terra. Ano de 1320. Quinta de Bernat Estanyol Navarcles. Principado da
Catalunha
«(…) Primeiro, foram as nossas
terras, as da Catalunha velha, e depois a nossa liberdade, a nossa própria
vida..., a nossa honra. Foram os teus avós, contava-lhe com voz trémula, sem
deixar de olhar para as terras, quem perdeu a liberdade. Foi-lhes proibido
abandonar os campos, foram transformados em servos, em homens amarrados aos
seus senhores, a quem também permaneceriam amarrados os seus filhos, como eu, e
os seus netos, como tu. A nossa vida..., a tua vida está nas mãos do senhor,
que faz justiça e tem direito a maltratar-nos e a ofender a nossa honra. Nem
sequer nos podemos defender! Se alguém te maltratar, deverás pedir socorro ao
teu senhor, para que ele exija reparação e, se a conseguir, ficará com metade
dessa reparação.
Depois, invariavelmente,
recitava-lhe os múltiplos direitos do senhor, direitos que tinham acabado por
ficar gravados na memória de Bernat, pois nunca se atrevera a interromper o monólogo
exaltado do pai. O senhor podia exigir juramento a um servo a qualquer momento.
Tinha direito a cobrar uma parte dos bens do servo se este morresse sem
testamento, ou quando um filho herdava; se fosse estéril; se a sua mulher
cometesse adultério; se a casa se incendiasse; se a hipotecasse; se casasse com
um vassalo de outro senhor e, evidentemente, se quisesse abandoná-la. O senhor
podia deitar-se com a noiva na sua primeira noite; podia reclamar as mulheres
para amamentarem os seus filhos, ou as filhas destas para servirem como criadas
no seu castelo. Os servos estavam obrigados a trabalhar gratuitamente as terras
do senhor; a contribuir para a defesa do castelo; a pagar parte dos frutos das
suas culturas; a dar guarida ao senhor ou aos seus convidados nas suas casas e
alimentá-los durante essa estada; a pagar por utilizar os bosques ou as terras
de pasto; a utilizar, pagando antecipadamente, a forja, o forno ou o moinho do
senhor, e a enviar-lhe prendas pelo Natal e outras festividades. E que dizer da
Igreja?
Quando o pai de Bernat fazia essa
pergunta, a voz enfurecia-se-lhe ainda mais. Monges, frades, sacerdotes, diáconos,
arcediagos, cónegos, abades, bispos, recitava, qualquer deles é igual aos
senhores feudais que nos oprimem! Proibiram até que nós, camponeses, tomássemos
hábitos, para que não pudéssemos fugir das terras e, assim, perpetuássemos a
nossa servidão! Bernat, advertia-o solenemente nas vezes em que a Igreja se
tornava o alvo da sua ira, nunca confies nos que dizem servir a Deus. Falar-te-ão
com serenidade e boas palavras, tão cultas que nem conseguirás entendê-las.
Tentarão convencer-te com argumentos que só eles sabem urdir, até se apoderarem
da tua razão e da tua consciência. Apresentar-se-ão como homens bondosos, que
dirão querer salvar-nos do mal e da tentação, mas na realidade a sua opinião
sobre nós está escrita e todos eles, como soldados de Cristo que se proclamam,
seguem com fidelidade aquilo que está nos livros. As palavras deles são meras
justificações e as suas razões são idênticas às que poderias apresentar a um
idiota.
Pai, recordou-se Bernat de lhe
ter perguntado numa dessas ocasiões, que dizem os livros deles acerca de nós,
camponeses? O pai olhou os campos, até onde se confundiam com o céu, e aí
parou, porque não queria olhar para o lugar em cujo nome falavam hábitos e
sotainas. Dizem que somos animais, brutos, e que não somos capazes de entender
o que é a cortesia. Dizem que somos horríveis, vis e abomináveis,
desavergonhados e ignorantes. Dizem que somos cruéis e toscos, que não
merecemos nenhuma honra porque não sabemos apreciá-la, e que só somos capazes
de entender as coisas à força. Dizem que... Pai... E somos isso tudo? Filho,
pelo menos é em tudo isso que querem tornar-nos. Mas o pai reza todos os dias,
e quando a mãe morreu... À Virgem, filho, à Virgem. Nossa Senhora nada tem que
ver com frades e sacerdotes. Podemos continuar a acreditar nela.
Bernat Estany ol teria gostado de
poder voltar a debruçar-se, de manhã, no parapeito da janela, e de falar com a
sua jovem mulher; contar-lhe o que o pai lhe tinha contado a ele e olhar com
ela para os campos. No que restava de Setembro e durante todo o mês de Outubro,
Bernat aparelhou os bois e arou os campos, rompendo e revolvendo a dura crosta
que os cobria para que o sol, o ar e o estrume renovassem a terra. Depois, com
a ajuda de Francesca, semeou o cereal; ela, com um cesto, lançava as sementes,
e ele, com a junta de bois, primeiro arava e depois aplanava a terra, já
semeada, com uma pesada prancha de ferro. Trabalhavam em silêncio, um silêncio
que só era interrompido pelos gritos que Bernat lançava aos bois e que
ressoavam por todo o vale. Bernat acreditava que trabalharem juntos os
aproximaria um pouco. Mas não. Francesca continuava indiferente: pegava no
cesto e lançava as sementes sem sequer olhar para ele». In Ildefonso Falcones, A Catedral
do Mar, 2006, Bertrand Editora, 2009, ISBN 978-972-251-511-5.
Cortesia de BertrandE/JDACT