segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Procurai a Minha Face. John Updike. «A jovem, uma lâmina fina e nova no velho e fofo revestimento da cadeira, lê com a sua entrecortada voz nova-iorquina, uma voz que se inclina na direcção de Hope…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Deixe-me começar lendo para V, diz a jovem vestida de preto, uma figura esguia, sentada tensa e empertigada na beira da espreguiçadeira de um tecido xadrez grosseiro e desbotado, os braços de carvalho cor de laranja envernizados, que Hope conheceu inicialmente no solário em Germantown, onde seu avô se instalava para ler o jornal, com a cabeça reclinada para trás para usufruir as vantagens das grossas bifocais, sim, isso há mais de setenta anos, uma declaração sua tirada do catálogo ds sua última exposição, em 1996. Quando criança Hope sentava-se na cadeira tentando sentir como era ser adulta, apoiando seus pequenos cotovelos nos braços largos, espalhando os dedos, um anel de gordura em volta de cada articulação, na ponta da cavilha, que era encaixada no braço ligeiramente curvo, uma espécie de cunha de madeira com uma barra, a extremidade do assento fixando a cavilha. Os braços da cadeira eram separados demais para ela apoiar mais de um cotovelo e uma mão ao mesmo tempo. Devia ter, quanto?, uns cinco, seis anos. Mesmo quando nova, na década de 1920 ou ainda antes, a cadeira devia ter sido uma coisa desajeitada, deselegante, um tipo de mobília de verão torrando no calor do fundo do solário envidraçado, com o filodendro plantado no vaso e o descanso inclinado para os pés, e a parte de cima dividida como uma torta em longas fatias de couro triangulares de diferentes cores.
Quando a morte da avó nos anos 1950 provocou, por fim, a desmancha da casa de Germantown, Hope desejou a velha cadeira e, não havendo objecção do seu bem-humorado irmão sobrevivente, trouxe-a para Long Island, onde foi colocada no andar superior, no seu assim chamado estúdio, no qual às vezes ela tentava ler junto à janela que dava para o norte, a janela corrediça que deixava penetrar o vento que vinha do estreito de Block Island, enquanto lá em baixo Zack ouvia discos de jazz, Armstrong, Benny Goodman, um arranhado Beiderbecke, alto demais; e de lá para o apartamento com Guy e as crianças na East Seventy-ninth, no quarto extra dos fundos com as suas paredes pardas, ao lado do aquecedor que estalava como um prisioneiro demente enquanto ela tentava determinar o seu próprio ritmo com o pincel carregado de tinta; e dali para Vermont, onde ela e Jerry haviam comprado e reformado uma casa e lá se enfurnado no seu último reduto na vida, uma cadeira transportada da mormacenta Pensilvânia para um clima mais frio, mais alto, todavia dificilmente incongruente nesta saleta da frente despojada, afectada, de tecto baixo, os pés dianteiros redondos da cadeira pousados sobre o tapete oval de retalhos trançados em espiral, os pés traseiros quadrados sobre as tábuas do piso colorindo o reluzente preto-avermelhado de cerejeira, os marrons, os verdes e os estreitos carmins do tecido xadrez desbotando ainda mais num tom pálido, aqui na esparsa luz montanhosa do começo de Abril. Estranho, Hope pensava, como as coisas nos seguem de lugar em lugar, mais leais que amigos de carne e osso, que nos abandonam quando morrem. A casa de Germantown tornara-se grande demais nos últimos e solitários anos da sua avó, as suas grossas paredes de pedra foram abocanhadas até os peitoris do segundo andar por um sombrio matagal, hortênsias e azevinho e um pau-rosa cujos galhos se quebravam a cada tempestade de gelo ou neve, a caiação descascando e o reboco caindo em longos fragmentos quebradiços que se perdiam entre os caules de peónias, as raízes do pau-rosa. Ela tinha adorado morar lá quando pequena, mas depois que seus pais se mudaram para Ardmore, as visitas à casa davam uma sensação estranha, a gigantesca cicuta de ramos caídos ficara sinistra, o quintal com sua relva macia com um cheiro quente e estagnado, como o ar de uma estufa, a balança que o seu activo avôzinho, a primeira pessoa cuja morte Hope conheceu, tinha pendurado no galho de uma nogueira apodrecendo, as cordas e a tábua de um jeito eternamente negligenciado que a assustava.
A jovem, uma lâmina fina e nova no velho e fofo revestimento da cadeira, lê com a sua entrecortada voz nova-iorquina, uma voz que se inclina na direcção de Hope com uma pressão de ansiedade mas também com o que parece ser, sob esta luz trémula de um período tardio da vida, uma espécie de afectação filial, por um longo tempo vivi como reclusa, temendo as muitas evidências da não existência de Deus abundantes no mundo. O mundo veio-me lentamente, é a colcha de retalhos do Diabo, colorida em vez de imaculada. Restrinjo minhas atuais telas a tons de cinza cada vez mais juntos um do outro, como que na pré-aurora, antes de a luz começar a alçar as arestas para a existência. Estou tentando, pode ser, pintar a santidade. Suponho que deveria ficar lisonjeada quando alguns críticos chamam esta de minha melhor fase, eles escrevem que finalmente me livrei da sombra do meu primeiro marido. Mas miraculosamente, pode-se dizer, parei de me importar com o que eles pensam, ou que imagem tenho aos olhos de estranhos. Fim da citação. Isso foi há cinco anos. V diria que isto ainda é verdade? Hope tenta desacelerar a jovem, arrastando a sua própria voz como se fosse um pensamento. Bastante verdade, diria eu, apesar de soar num tom de autodramatização. Talvez temer seja forte demais. Sentir horror e desgosto em relação a ter sido mais acurado, e apropriado.
Hope sente um nó na garganta com a presença dessa intrusa nervosamente agressiva, com a sua face urbana branca, suas longas mãos de unhas escuras e o seu traje dogmaticamente preto, gola preta, jaqueta de couro sintético preta com um grande zíper central, cabelos pretos presos acima das orelhas por dois pentes curvos prateados e que caíam sobre as costas como um leque solto e sedoso, e o sinistro acabamento de um calçado grosseiro de bico quadrado, os cadarços passando por uma dúzia ou mais de ilhoses como duas escadinhas pretas subindo e sendo cobertas pelas bocas largas das suas calças, as quais eram feitas de um tecido finamente canelado, um pouco brilhante, que Hope nunca viu antes, um tecido sem nome. As botas, com aquele novo tipo de salto alto, largo para os lados mas estreito no sentido do comprimento, não aparentavam ser muito confortáveis, a não ser que agora o aspecto masculino fosse considerado confortável». In John Updike, Procurai a Minha Face, 2002, Civilização Editora, 2015, ISBN 978-972-262-409-1.

Cortesia de CivilizaçãoE/JDACT