Cortesia
de wikipedia e jdact
«Deixe-me
começar lendo para V, diz a jovem vestida de preto, uma figura esguia, sentada
tensa e empertigada na beira da espreguiçadeira de um tecido xadrez grosseiro e
desbotado, os braços de carvalho cor de laranja envernizados, que Hope conheceu
inicialmente no solário em Germantown, onde seu avô se instalava para ler o
jornal, com a cabeça reclinada para trás para usufruir as vantagens das grossas
bifocais, sim, isso há mais de setenta anos, uma declaração sua tirada do catálogo
ds sua última exposição, em 1996. Quando criança Hope sentava-se na cadeira
tentando sentir como era ser adulta, apoiando seus pequenos cotovelos nos braços
largos, espalhando os dedos, um anel de gordura em volta de cada articulação,
na ponta da cavilha, que era encaixada no braço ligeiramente curvo, uma espécie
de cunha de madeira com uma barra, a extremidade do assento fixando a cavilha.
Os braços da cadeira eram separados demais para ela apoiar mais de um cotovelo
e uma mão ao mesmo tempo. Devia ter, quanto?, uns cinco, seis anos. Mesmo
quando nova, na década de 1920 ou ainda antes, a cadeira devia ter sido uma
coisa desajeitada, deselegante, um tipo de mobília de verão torrando no calor
do fundo do solário envidraçado, com o filodendro plantado no vaso e o descanso
inclinado para os pés, e a parte de cima dividida como uma torta em longas
fatias de couro triangulares de diferentes cores.
Quando a morte da avó nos anos
1950 provocou, por fim, a desmancha da casa de Germantown, Hope desejou a velha
cadeira e, não havendo objecção do seu bem-humorado irmão sobrevivente, trouxe-a
para Long Island, onde foi colocada no andar superior, no seu assim chamado estúdio,
no qual às vezes ela tentava ler junto à janela que dava para o norte, a janela
corrediça que deixava penetrar o vento que vinha do estreito de Block Island,
enquanto lá em baixo Zack ouvia discos de jazz, Armstrong, Benny Goodman, um
arranhado Beiderbecke, alto demais; e de lá para o apartamento com Guy e as
crianças na East Seventy-ninth, no quarto extra dos fundos com as suas paredes
pardas, ao lado do aquecedor que estalava como um prisioneiro demente enquanto
ela tentava determinar o seu próprio ritmo com o pincel carregado de tinta; e
dali para Vermont, onde ela e Jerry haviam comprado e reformado uma casa e lá
se enfurnado no seu último reduto na vida, uma cadeira transportada da
mormacenta Pensilvânia para um clima mais frio, mais alto, todavia dificilmente
incongruente nesta saleta da frente despojada, afectada, de tecto baixo, os pés
dianteiros redondos da cadeira pousados sobre o tapete oval de retalhos trançados
em espiral, os pés traseiros quadrados sobre as tábuas do piso colorindo o
reluzente preto-avermelhado de cerejeira, os marrons, os verdes e os estreitos
carmins do tecido xadrez desbotando ainda mais num tom pálido, aqui na esparsa
luz montanhosa do começo de Abril. Estranho, Hope pensava, como as coisas nos
seguem de lugar em lugar, mais leais que amigos de carne e osso, que nos
abandonam quando morrem. A casa de Germantown tornara-se grande demais nos últimos
e solitários anos da sua avó, as suas grossas paredes de pedra foram
abocanhadas até os peitoris do segundo andar por um sombrio matagal, hortênsias
e azevinho e um pau-rosa cujos galhos se quebravam a cada tempestade de gelo ou
neve, a caiação descascando e o reboco caindo em longos fragmentos quebradiços
que se perdiam entre os caules de peónias, as raízes do pau-rosa. Ela tinha
adorado morar lá quando pequena, mas depois que seus pais se mudaram para
Ardmore, as visitas à casa davam uma sensação estranha, a gigantesca cicuta de
ramos caídos ficara sinistra, o quintal com sua relva macia com um cheiro
quente e estagnado, como o ar de uma estufa, a balança que o seu activo avôzinho,
a primeira pessoa cuja morte Hope conheceu, tinha pendurado no galho de uma
nogueira apodrecendo, as cordas e a tábua de um jeito eternamente negligenciado
que a assustava.
A jovem, uma lâmina fina e nova
no velho e fofo revestimento da cadeira, lê com a sua entrecortada voz
nova-iorquina, uma voz que se inclina na direcção de Hope com uma pressão de ansiedade
mas também com o que parece ser, sob esta luz trémula de um período tardio da
vida, uma espécie de afectação filial, por um longo tempo vivi como reclusa,
temendo as muitas evidências da não existência de Deus abundantes no mundo. O
mundo veio-me lentamente, é a colcha de retalhos do Diabo, colorida em vez de
imaculada. Restrinjo minhas atuais telas a tons de cinza cada vez mais juntos
um do outro, como que na pré-aurora, antes de a luz começar a alçar as arestas
para a existência. Estou tentando, pode ser, pintar a santidade. Suponho que
deveria ficar lisonjeada quando alguns críticos chamam esta de minha melhor
fase, eles escrevem que finalmente me livrei da sombra do meu primeiro marido.
Mas miraculosamente, pode-se dizer, parei de me importar com o que eles pensam,
ou que imagem tenho aos olhos de estranhos. Fim da citação. Isso foi há
cinco anos. V diria que isto ainda é verdade? Hope tenta desacelerar a jovem,
arrastando a sua própria voz como se fosse um pensamento. Bastante verdade,
diria eu, apesar de soar num tom de autodramatização. Talvez temer seja forte demais.
Sentir horror e desgosto em relação a ter sido mais acurado, e apropriado.
Hope sente um nó na
garganta com a presença dessa intrusa nervosamente agressiva, com a sua face
urbana branca, suas longas mãos de unhas escuras e o seu traje dogmaticamente
preto, gola preta, jaqueta de couro sintético preta com um grande zíper
central, cabelos pretos presos acima das orelhas por dois pentes curvos
prateados e que caíam sobre as costas como um leque solto e sedoso, e o
sinistro acabamento de um calçado grosseiro de bico quadrado, os cadarços
passando por uma dúzia ou mais de ilhoses como duas escadinhas pretas subindo e
sendo cobertas pelas bocas largas das suas calças, as quais eram feitas de um
tecido finamente canelado, um pouco brilhante, que Hope nunca viu antes, um
tecido sem nome. As botas, com aquele novo tipo de salto alto, largo para os
lados mas estreito no sentido do comprimento, não aparentavam ser muito confortáveis,
a não ser que agora o aspecto masculino fosse considerado confortável». In John Updike, Procurai
a Minha Face, 2002, Civilização Editora, 2015, ISBN 978-972-262-409-1.
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