Invasão
da Galiza
«(…) Senhor, ides tão cedo...,
murmurou a dona, palavras que custavam a ouvir..., mandai o camareiro esperar,
dizei-lhe que tendes uma emergência, qualquer coisa que vos faça ficar mais um ratito.
Às palavras madrugadoras da galega, Fernando I não voltou resposta. A moça era
linda, ele suspirava. Ela sem bordados que lhe tapassem as virtudes, ele na
borda da cama sentado a enfiar as calças soladas e a pensar quão aborrecido era
marchar atrás de tantas cavalgaduras por esses caminhos afora. Pensasse em
outras coisas. Ali não podia ficar. Vontade não lhe faltava, mas como voltaria
as costas às obrigações? Combater o usurpador, anulá-lo, anexar mais um bocado
de terra ao território português valia bem o esforço que teria de fazer para
resistir ao chamamento do corpo oferecido sobre a cama.
Saído de Tui, por aí acima foi um
passeio até Padrón, pequeno povoado sem a dimensão da cidade à beira do rio
Minho, mas suficiente para à sua volta caber toda a tropa, enquanto a comitiva
real assentou arraiais na única casa apalaçada que lá havia, modesta demais
para tanta exuberância, mas bem digna se mostrou quando o fidalgo que a detinha
se ajoelhou aos pés de Fernando e fez o voto feudal de auxílio e conselho. O
mesmo acolhimento e mesuras em Pontevedra, mais ofertas e bajulices, antes de
rumar a Santiago de Compostela, isso sim, um santuário de verdade, onde o rei
permaneceria por dois dias em actos devocionais, promessas, rogos, tudo em
comunhão com Deus e os santos.
A campanha estava a revelar-se
para o monarca Fernando bem mais fácil e compensadora do que alguma vez pensara.
Até ali não gastara uma seta, uma pedra, não quebrara uma lâmina, nem uma baixa
se verificou entre a tropa. Levavam já dez dias de caminho, espaço de tempo em
que as viandas começavam a dar sinal de exaustão, mas nesta campanha comiam que
nem nababos, era à larga, divertimento e tudo. Nem sequer os mais frágeis
ficaram pelo caminho, pois se eram tão bem alimentados, por certo resistiriam,
pelo menos até encontrarem quem lhes tirasse o apetite.
Mas havia os que estranhavam. É que
o tempo passado desde que saíram de Lisboa não tinha nas suas horas qualquer
reacção de Henrique de Trastâmara. Matutando nisto, Fernando I, ajudado a pensar
pelos do Conselho, concluiu que o rei castelhano se encolhia de medo só de
pensar que a caminho ia um verdadeiro rei, filho e neto de outros reis, de uma
realeza insuspeita, diferente do castelhano, que era bastardo. O cúmulo da
invasão deu-se quando o exército irrompeu pelas ruas da Corunha, no meio de
vivas ao rei Fernando, o grande salvador da Galiza. Era como se os coruñeses
esperassem o seu rei, que voltava de uma longa viagem.
Até chegar ao paço condal foi uma
festa, e ainda Fernando não tinha desmontado, já o conde João Fernandes Andeiro
se torcia em requebros de grande cavaleiro. Ajoelhou-se, beijou-lhe as mãos e
fez todas as promessas, as que cumpriria, e as outras, que mais tarde, sem por
enquanto os dois saberem, o levaria à traição. Logo ali houve uma empatia
fulminante entre os dois. Era de um homem assim que o rei precisava para seu
conselheiro particular; o último entre muitos a oferecer-lhe soluções, a ajuda
mais competente na hora de decidir.
Com a pessoa certa a seu lado, o
rei Fernando demorou-se algum tempo na cidade a cerzir tácticas de guerra e
teias políticas, tudo para levar de vencida o usurpador. Para tal, exigiu
reforços, mandou erguer muros e indigitar fidalgos para os diferentes cargos,
impondo em Tui e Baiona atalaias e velas pela noite afora, não fosse o
adversário atacá-lo durante as trevas. Todas as decisões tinham carácter
militar, no entanto, não deixavam de ser deliberações administrativas, como se
a sua presença na Galiza estivesse para durar». In Jorge Sousa Correia, A
Tentação de D. Fernando, Clube do Autor, 2017, ISBN 978-989-724-344-8.
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