jdact
«(…) E, agora, vejamos outra vez a
bela tradução do Jorge Campos Costa. É por sugestão sua que o editor escolheu a
portada do livro, um quadro, hoje em Nova Iorque, e que devemos a um pintor
romântico, o judeu inglês Solomon Alexander Hart. Mostra uma festa religiosa na
sinagoga (esnoga) portuguesa de Liorna (Livorno), em 1850. Alguns fragmentos
arquitectónicos permitem reconhecer com exactidão o célebre monumento, que foi destruído
por aviões ingleses num bombardeamento da Segunda Guerra Mundial. Em contrapartida,
é muito manifesta a falta de fidelidade histórica no vestuário dos assistentes.
Naturalmente, não oravam assim, os judeus aburguesados após a emancipação de 48.
Hart tirou-lhes os seus chapéus e gravatas e vestiu-os com um estranho disfarce
de roupa oriental, como sacerdotes da época bíblica. Hart pinta judeus ideais, imaginários,
judeus potenciais, como o descreveu com a sua admirável fórmula o saudoso professor
Révah. Um judeu que já não existe, ou que ainda não nasceu. Hart apresenta o judaísmo
com disfarce, e o próprio judaísmo como um disfarce. Hart pinta a duplicidade
religiosa que antecipa, na história dos judeus e cristãos-novos portugueses, o judaísmo
moderno.
A duplicidade não significa que
haja uma touca bíblica debaixo do chapéu. A tradição não é um último estrato arqueológico
por debaixo da modernidade. Como um contacto imaginário com um fio de tradição perdido,
criou uma nova tradição e uma nova fidelidade. Isso, precisamente, é o que
ensina a história judaica portuguesa. É este trabalho da memória, que existe
também nos que traziam a gravata no peito, ou a cruz. Para os cristãos-novos portugueses,
que foram, depois da conversão de 1497, os últimos sobreviventes do judaísmo na
Europa Atlântica, a tarefa não foi a de conservar tradições ancestrais, mas a de
inventar, criar um judaísmo inspirado em outras fontes do saber e sentir: rumores
do estrangeiro, leituras bíblicas, modelos cristãos ou profanos, e a própria
criatividade poética.
Citarei um exemplo só: de uma
oração clandestina, a mais popular dos criptojudeus portugueses, uma trova em vinte
versos que chegava a ser uma espécie de hino do criptojudaísmo português. Foi dita
já no século XVI e ainda no século XX, foi dita por almocreves com tricórnios, ou
por automobilistas com casquetes, foi dita em Trás-os-Montes ou nas Colónias. Os
primeiros exemplos surgem nos anos 1580, segundo os estudos eruditos da professora
Elvira Azevedo Mea: são de confissões de nove prisioneiras da Inquisição (maldita), todas mulheres
de Trás-os-Montes ou, mais precisamente, originárias do concelho de Torre de Moncorvo.
Do século XVII, há testemunhos de prisioneiras originárias da vila de Carção, em
Trás-os-Montes, de Lisboa, de Cuenca, em Espanha, de Sevilha e até da Cidade de
México. No século XVIII, confessa-a um homem, até que enfim, um homem!, em
Bragança. Ainda no século XX, recitam-na de memória testemunhas de Bragança, de
Felgueiras e de Belmonte.
Leio-vos aqui as duas famosas oitavas:
«Alto Dio de Abraão,
Rei forte de Israel!
Tu, que ouviste a Daniel,
Ouve minha oração!
Tu, que nas grandes alturas
Te aposentas, Senhor,
Ouve a este pecador
Que te chama das baixuras,
Pois, Tu, a todas criaturas
Abres caminhos e fontes.
Alço meus olhos aos montes,
de onde virá minha ajuda?
(…)
In Carsten L. Wilke, História dos Judeus
Portugueses, 2007, Edições 70, 2009, ISBN 978-972-441-578-9.
Cortesia de E70/JDACT