«(…)
Minha ajuda de com Adonay
Quem fez o céu e a terra.
Livra-nos de tanta guerra,
pois que somos a tua grei,
de adorar deuses alheios,
coisa em que tanto o homem erra,
confesso que em mim se encerra,
grão pecado que em mim hei».
A oração está no mais puro estilo
da trova portuguesa, mas acumula as palavras fortes Israel e Adonay, marcadores
da identidade judaica, como no credo judaico do Ouve Israel. Há referências a
duas pessoas da história bíblica, Abraão e Daniel, enquanto as reminiscências
da liturgia judaica tradicional se reduzem ao miúdo fragmento de um salmo muito
popular, o salmo 121: elevo os meus olhos para os montes; de onde me vem o
socorro? O meu socorro vem do Senhor, que fez os céus e a terra.
Não penso que os cristãos-novos
tivessem uma ideia clara quanto à explicação desses montes. A erudição bíblica,
tentando decifrar a referência, diz que o salmo foi escrito pelo rei Ezequias
(ou por um poeta judeu em sua memória), no momento do cerco de Jerusalém pelos
Assírios, no ano de 701 AC. O rei assírio Senaqueribe estava então a terminar a
sua campanha de conquista; já havia tomado e saqueado ou destruído todas as
cidades da região: Damasco, Samaria, Hebron, Gaza, todo o Médio Oriente. Só a
pequena Jerusalém, que era uma colina correspondente ao actual bairro árabe de
Silwán, ficou no território conquistado, como a famosa pequena aldeia de
irredutíveis gauleses, com a diferença de que os cercados não sabiam
produzir poções mágicas. Debalde olhavam para os cumes dos montes no horizonte,
na esperança de um socorro: simplesmente, não havia quem os socorresse. E,
contudo, no momento de os assírios se lançarem ao assalto, houve no exército um
surto de epidemia, que os forçou a abandonar a cidade, sem a destruir, com o
rei Ezequias, o seu profeta Isaías e todo o futuro de Israel lá dentro.
Não fica claro se de onde me vem
o socorro é uma afirmação, e se dos montes, de algum modo, vem um socorro
divino; ou se é uma pergunta retórica, carregando esse desencanto do mundo que
Max Weber atribuiu à religião judaica. Um monte é só um monte e não pode dar
socorro nas guerras; o socorro está só em poder de Deus. O anónimo poeta da
Torre de Moncorvo não sabia a que faziam alusão estes misteriosos montes. Mas
ele e quem recitava os seus versos vagamente o adivinhavam. Fica do mundo
bíblico a mirada angustiada, o sentimento de desamparo, o desencanto do mundo
e, finalmente, a consolação. Assim, a diáspora judaica trocou as colinas da
Judeia pela Serra do Reboredo, no alto de Torre de Moncorvo; e levou os montes do
silencioso diálogo adiante, lá pela serrania de Espanha e para os vulcões de
México.
A guerra de Senaqueribe
transfornou-se em guerra feita pela Inquisição (maldita). Os deuses
alheios do Antigo Oriente transformaram-se nos santos cristãos; o invisível
Senaqueribe da oração fez-se o cardeal-Infante, Inquisidor Geral do Reino de
Portugal, ou outros colegas seus no mundo ibérico. Em Trancoso, houve uma
Lucrécia Nunes, mulher do chefe espiritual da sinagoga clandestina deste lugar,
que, ao chegar a Inquisição (maldita), teve imaginação para conceber a ideia
fantasiosa de pedir uma entrevista com o nefasto cardeal, para em seguida se deitar
com ele e, depois, lhe cortar a cabeça, imitando a façanha da heroína bíblica
com o general babilónio. E uma vez cumprida esta missão, esperava que a
Cristandade levantasse o seu cerco ao povo de Israel.
Os historiadores têm discutido se
o renascimento do judaísmo português entre os cristãos-novos portugueses no
exílio foi fruto de uma continuidade clandestina da tradição medieval, ou antes
uma relativa novidade, em reacção à exclusão e à perseguição. É, uma alternativa
falsa: não devemos imaginar a tradição como sendo um capital cultural de
símbolos, ideias e práticas herdadas e repetidas em combate contra a mudança. A
tradição nem é puramente conservadora, nem puramente reactiva: é um processo
activo, um labor contínuo de apropriação e de adaptação.
Este trabalho pertence, mutatis
mutandis, a todas as comunidades judaicas e, talvez, a todas as religiões.
Mas a história dos judeus portugueses, judeus, depois cristãos-novos, depois
outra vez judeus, dá uma expressão extrema a esse perpétuo esforço de adaptação
que constitui a história judaica». In Carsten L. Wilke, História dos Judeus
Portugueses, 2007, Edições 70, 2009, ISBN 978-972-441-578-9.
Cortesia de E70/JDACT