domingo, 9 de dezembro de 2018

O Evangelho Segundo Lázaro. Richard Zimler. «O coração aperta-se-me com a visão de tantos estranhos, e o meu primeiro pensamento é que tenho de apelar rapidamente à sua misericórdia»

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«(…) Eliezer, a porta que procuras sou eu!, grita. A voz é-me familiar, embora não seja capaz de a identificar. Antes que consiga voltar-me para ver quem é, sinto umas mãos empurrar-me para a frente. Caio e sou engolido pelas chamas. E, contudo, não me queimo nelas. E não morro. Vou cambaleando através das labaredas até dar comigo a voar num céu vermelho e magoado. Tenho o corpo revestido de penas prateadas. Yerushalayim ergue-se diante de mim e voo como uma flecha na direcção da sua cidadela. A Torre Faesal... Decido pousar-lhe no rebordo para avaliar as forças do inimigo, mas ao aterrar aí... Graças a essa metamorfose da emoção que nos marca para sempre como os filhos de Adam e Havvah, o vigoroso bater das minhas asas transforma-se nas batidas aceleradas do coração de um rapazinho galileu que acorda para dar consigo no seu quarto, nu, banhado em luar, perguntando-se de que maneira, e por que razão, se transformou num deus alado.

Tenho de te falar agora da semana que mudou a minha vida e me mandou para o exílio, aqui, em Rodes, e que te trouxe para o seio da nossa família. Vê se consegues imaginar-me como o viúvo e pai de dois filhos pequenos que eu era nessa altura, um homem que já celebrara trinta e seis aniversários com a família e os amigos, e que ainda não tinha a certeza do seu lugar no mundo... Uma tarde, acordo para me ver rodeado de uma amálgama de rostos que me são desconhecidos, iluminados pela luz cor de açafrão de uma dúzia de lanternas. O coração aperta-se-me com a visão de tantos estranhos, e o meu primeiro pensamento é que tenho de apelar rapidamente à sua misericórdia. Mas não digo uma palavra; sou um par de olhos que pestanejam, aterrados, à espera de pistas que me revelem a natureza da minha atribulação.
Por mero hábito, digo para mim próprio as palavras do Senhor ao profeta Yirmiyahu: não temas diante deles; porque estou contigo para te livrar. Mas uns gritos roucos vindos de um sítio que não consigo ver levam-me a contrair o rosto num esgar de medo, e apetece-me fugir. Em breve me chegam igualmente aos ouvidos sussurros apressados, que não consigo decifrar. As batidas insistentes e tensas dentro do meu peito fazem-me balançar de um lado para o outro, e tenho a garganta seca como areia. Nas profundezas da terra, é aí que os meus pensamentos em debandada parecem ter procurado refúgio. Um jovem de longos cabelos ergue uma tocha e inclina-se para mim, estudando-me com olhos húmidos e perturbados. Tem a túnica rasgada ao longo do colarinho.
Olho por cima do seu ombro e descubro sombras que fazem lembrar borboletas a esvoaçar num tecto de pedra pálida. Os odores pesados, doces e húmidos da mirra e do espicanardo enchem-me o peito ofegante. Trouxeram-me para uma caverna, penso. Tenho de tentar descobrir o que querem de mim antes de falar. Uma mulher pequena, de rosto tenso e olhos encovados e curiosos, debruça-se sobre mim. Segura um pequeno quadrado de tecido sobre a boca e o nariz, e perscruta-me como se tentasse resolver um cálculo complexo. Diz qualquer coisa ininteligível, em latim, talvez, e ergue as sobrancelhas, numa tentativa de me levar a responder-lhe. Pergunto-me porque não se dirige a mim em aramaico ou hebraico, ou grego.
Deve ser estrangeira. E os outros também. Contudo, estão quase todos vestidos à maneira de Judeia. À minha esquerda chora um velho corcovado, com o seu talit pelos ombros. Ao lado dele ergue-se uma mulher alta, de membros longos, dos seus quarenta anos, diria eu, apertando contra o peito uma mantilha de lã, como quem receia que ela lhe salte das mãos e fuja, se aliviar a pressão dos dedos. Tem o rosto devastado de uma alma perdida que viu demasiado, e o colarinho do peplos rasgado. A pequena cicatriz que ostenta no queixo, em forma de crescente, parece-me familiar». In Richard Zimler, O Evangelho Segundo Lázaro, Porto Editora, 2016, ISBN 978-972-004-854-7.

Cortesia de PEditora/JDACT