segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

O Manuscrito nos Confins do Mundo. Marcello Simoni. «O médico observou-o, curioso. Sobre o quê? Lembrais-vos daqueles rapazes com quem falava quando me encontrastes? Sim, eram muitos. E então? Vieram saber o que me aconteceu esta noite»

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O Signo do Sagitário. Paris, noite de 26 de Fevereiro
«(…) Não chegarás a bacharel só por fazeres prova dos conhecimentos, exortou-o. Tens de corrigir as tuas atitudes. Bernard fixou-o contrariado. Pensei que isso era uma prerrogativa dos padres. Deixa lá os padres. Se quiseres ser respeitado, tens de te comportar dignamente. E a dignidade baseia-se em três regras fundamentais: a seriedade, a pudicícia e a maturidade. Ao elencá-las, Suger não pôde deixar de se lembrar das vezes que ele próprio as infringira. Mas não se tratava de si. Ele sabia bem como esconder as suas fraquezas por trás daquele seu ar respeitável. Bernard, pelo contrário, era sincero e leal, mas tinha um temperamento impulsivo.
O jovem concordou, dando um pontapé à enésima pedra da rua. Não me dás ouvidos! Suger irritou-se. Queres prestar um pouco de atenção à conversa? Como resposta, Bernard devolveu-lhe um olhar tão profundo que o fintou. Devo fazer-vos uma confissão, magíster.
O médico observou-o, curioso. Sobre o quê? Lembrais-vos daqueles rapazes com quem falava quando me encontrastes? Sim, eram muitos. E então? Vieram saber o que me aconteceu esta noite. Tencionam vingar-se do taberneiro de Saint-Marcel, dirigem-se para a taberna. Mas isso não te diz respeito. Mas, magíster!, insistiu Bernard. Tenho medo de que façam mal àquele tacanho. Sentir-me-ia responsável. Com um gesto exasperado, Suger colocou-se à sua frente. De uma vez por todas, Bernard. Deves aprender a não te imiscuir em casos semelhantes. Bateu-lhe com o indicador na testa. És um rapaz inteligente, tens mais em que pensar. Depois da Quaresma, se Deus quiser, serás bacharel. Se trabalhares afincadamente, dentro de poucos anos chegarás a magíster. Compreendeste? Chega de brigas! Chega de cabeçadas!
Mas eu... Nem mas nem meio mas! Não te interessa o título de bacharel? Os olhos de Bernard cintilaram de ambição. Claro que sim, magíster. Interessa-me e de que maneira! Então deves fazer o que te digo.

Duas horas depois, Suger dava a sua aula no claustro de Sainte-Geneviève. Uma imensidão de estudantes ouvia-o com a respiração suspensa, tomando apontamentos nos seus dípticos de cera. Eram, na sua maioria, rapazes desprovidos de livros próprios, por isso constrangidos a confiar na memória e na esperança de que o magíster lhes dispensasse algumas notas escritas no fim da aula. Bernard assistia na primeira fila. Podia tratar-se de uma manhã como outra qualquer, se não fosse o facto de dois frades dominicanos se terem infiltrado no meio dos alunos. Tinham permanecido debaixo das arcadas do claustro como dois corvos e ouviam a lição com ar de reprovação, como se as palavras do magíster escondessem referências sacrílegas.
Suger ignorou-os durante todo o tempo e, como era seu hábito, no final da lição reuniu os alunos e envolveu-os num debate de modo a ajudá-los a familiarizar-se com os temas recém-tratados. O debate centrava-se na afirmação de que a doença era consequência de uma causa que a desencadeava, sem a qual o mal físico não poderia manifestar-se. Depois de uma troca de opiniões iniciai, um estudante objectou que se fosse essa a vontade de Deus, a doença manifestar-se-ia sempre mesmo que não houvesse uma causa. Suger negou, explicando que nem Deus podia subverter as leis da natureza, uma vez que Ele as havia criado. Um princípio divino, especificou, não podia contradizer-se a si próprio. Aquelas palavras bastaram para desencadear a gritaria». In Marcello Simoni, O Manuscrito nos Confins do Mundo, 2013, Clube do Autor, Lisboa, 2014, ISBN 978-989-724-169-7.
                                                                                            
Cortesia do CdoAutor/JDACT