Manuel I e o fim da tolerância religiosa
(1496 - 1497
Organização comunitária: judiarias,
mourarias e comunas
«(…) O cargo mais importante
exercido por um muçulmano na corte portuguesa medieval foi o de estribeiro-mor do
rei. Um certo mestre Ali foi o estribeiro-mor de Afonso IV (1325-1357), que o enviou
com embaixador ao sultão merínida de Marrocos em 1337-1338. No tempo do mesmo
monarca, um médico da corte chamado mestre Ali (talvez o mesmo homem?), agindo em
nome de todos os muçulmanos do reino procurou obter da Coroa a garantia de que esta
respeitaria o direito dos muçulmanos de resolver as suas questões segundo as
suas leis. No entanto, este parece ter sido um acordo informal entre o aparentemente
influente Ali e os seus correligionários. Só no reinado de Afonso V é que houve
uma tentativa de criar o cargo de um oficial responsável por todos os muçulmanos
em Portugal. Com efeito, em 1451, Sa'id Caciz de Lisboa foi nomeado
representante (requeredor sobliçitador procurador jerall) de todas as comunidades
muçulmanas no reino. Não parece que este cargo se tivesse tornado uma instituição
e não existem outras referências ao mesmo nos registos da chancelaria régia. Uma
importante consequência da inexistência de um alcaide-mor era que os recursos
contra as sentenças proferidas pelo alcaide das comunas tinham de ser intentados
junto de um corregedor de comarca cristão e não junto de um magistrado
muçulmano.
Demografia e distribuição geográfica
A distribuição geográfica das comunas
muçulmanas e judaicas em Portugal era bastante diferente. No século XV, as comunidades
judaicas já se haviam espalhado por todo o reino, desde a fronteira com a Galiza,
a norte, às cidades do Algarve no sul. Estabeleceram-se comunidades judaicas em
praticamente todas as municipalidades de Portugal. A sua dimensão era muito
variável e, na maioria das cidades, o número da população judaica rondava
provavelmente as dezenas e centenas, e não os milhares. A população judaica de Estremoz
em 1462 era constituída por apenas 25 casas, comparadas com as 800 cristãs, enquanto
um recenseamento da população masculina da região da Beira, realizado em 1496, regista
um total de 2334 homens, incluindo 108 judeus, residindo na vila da Covilhã. Só
nos centros económicos mais importantes do (a Crónica de Affonso XI, em castelhano,
conta que, durante a guerra luso-castelhana de 1336-1339, Afonso IV de Portugal
enviou o mestre Ali como seu embaixador ao sultão merínida de Marrocos, em
l337,para tentar conseguir o apoio deste contra Castela) reino é que a população
judaica devia atingir, ou mesmo ultrapassar, um milhar. Não existem números para
as comunidades de Lisboa e Porto, mas estas eram, com certeza, as maiores,
contando alguns milhares de indivíduos. Em 1496, os judeus de Santarém
constituíam 400 casas.
As comunas muçulmanas, ao contrário
das judaicas, situavam-se quase todas na metade sul do reino, precisamente no território
que havia permanecido sob domínio muçulmano durante mais tempo. Documentos do século
XIV confirmam a existência de comunas muçulmanas, ou pelo menos de comunidades muçulmanas
organizadas, em Lisboa, Leiria, Alenquer, Santarém, Avis, Elvas, Estremoz,
Setúbal, Alcácer do Sal, Évora, Moura, Beja, Silves, Loulé, Tavira e Faro. No século
XV, as comunas de Alenquer, Avis e Estremoz deixam de aparecer em registos
documentais. Não se sabe se estas comunas deixaram efectivamente de existir ou se
simplesmente não constam dos registos oficiais ainda existentes.
A presença muçulmana em Leiria e Coimbra
levanta algumas questões importantes. Um documento de 1303 refere-se a uma mouraria
com uma mesquita em Leiria e a um indivíduo chamado Ibraim Alcayde. A comunidade
muçulmana de Leiria seria, portanto, suficientemente numerosa para ter um local
de culto designado e um alcaide. No entanto, não existem provas de que alguma
vez tivessem tido uma comuna legalmente constituída. Parece que a importante cidade
de Coimbra também tinha uma mouraria, pelo menos no século XIII, mas a sua população
muçulmana nunca esteve organizada numa comuna. Um documento de 1433 confirma a presença
de muçulmanos livres vivendo em Coimbra, pagando um imposto individual anual de
20 soldos.
Outras interrogações envolvem também
a possível presença de muçulmanos nas vilas fronteiriças de Sabugal e Serpa. Os
registos fiscais leoneses e castelhanos indicam a existência de comunidades
muçulmanas organizadas e contribuintes nestas vilas em 1284-1285 e 1290. Depois
de Castela ceder estes territórios a Portugal em 1297 , não existem mais
informações relativas à existência de comunidades muçulmanas em qualquer destas
vilas. Sabe-se que existiram algumas comunidades muçulmanas noutras partes do
reino, mas os documentos ainda existentes não fornecem quaisquer informações sobre
a sua organização ou importância numérica. Outros documentos revelam indícios de
uma comunidade muçulmana nas pequenas vilas de Colares e Sintra. Em meados do século
XIV, havia uma comunidade muçulmana no porto de pesca de Olhão, no Algarve, suficientemente
organizada para ter um alcaide, mas mais nada se sabe acerca da mesma. Noutros documentos,
ainda encontramos referências casuais a habitantes muçulmanos residindo em
Cuba, Coina, Montemor-o-Novo, Campo Maior, Vila Viçosa, Vidigueira, Olivença, Óbidos,
Muge, Castelo Branco e Abrantes. Se existiram populações muçulmanas no Norte de
Portugal, o seu número nunca foi suficientemente importante para que as mesmas
formassem as suas próprias comunas». In François Soyer, A Perseguição aos Judeus
e Muçulmanos de Portugal, 2007, Edições 70, 2013, ISBN 978-972-441-709-7.
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