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«(…)» Napoleão examinadas, as quais, além disso, classifica como sendo
de origem ou fonte francesa (Chateaubriand), alemã (Metternich) e inglesa
(quem?). Espero que um dia o método de Claire, essa multiplicidade de técnicas
pela primeira vez utilizadas na investigação histórica, chegue a ser usual, e
que um dia terá igualmente envelhecido e terá de ser superado; hoje é tão
abrupta a sua novidade, é tão desafiadora, que não estranho a repulsa com que foi
recebida e a chacota geral com que os demais manifestam a sua pessoal e
irreparável rotina. Naquela noite, Ariadne, tu lias, fomos progressivamente
conquistados por um discurso de estrutura rigorosamente matemática e por uma
palavra de expressão rigorosamente poética, de forma que o resultado foi a mais
perfeita embriaguez, a mais inconcebível, da inteligência e da sensibilidade.
Reconheço que cheguei a estar-me nas tintas para o que se debatia: se Napoleão
foi algo mais do que uma palavra favorecida, embalada, amamentada pela
necessidade política.
Uma vez perguntei a Claire, com base nos primeiros acontecimentos, como
é que a ideia lhe tinha ocorrido, ou qual tinha sido o caminho que o levara até
ela, e o que me respondeu não deixou de me chocar: até ouvi palavras pelas quais
se calhar nós dois, isto é, tu e eu, estamos agora na ilha, e fora os dias em
que as minhas aulas me levam a acompanhar-te de manhã e a regressar contigo ao
entardecer, espero-te à hora do crepúsculo como vou fazer agora, e consumo
cigarro após cigarro até ouvir a tua buzina; contemplo-te depois enquanto
estacionas e como agitas a mão ao descobrires-me, fingindo surpresa: sabes de
sobra que estou à tua espera; e depois entras no barco e vens a conduzi-lo até
à mão que te ajuda a saltar e à face que recebe o teu beijo. Hoje não tiveste
carta. Natália, a ucraniana, perguntou-me por ti. Daqui a dois dias, às seis da
tarde, há reunião do departamento: Olga recomendou-me que não te esqueças de
comparecer. Hoje mal comi: apenas uma sande na cafetaria e regressei ao gabinete
de Claire, porque me mandou recado de que às duas e meia me telefonaria.
Disse-te onde está? Acabou por não telefonar. Estou preocupada. Claire
contou-me naquele dia que, quando era pequeno, ao ouvir o nome de Napoleão,
este lhe soou como se fosse falso e ao mesmo tempo conhecido, como um nome de
nada posto a nada. Tinha sete anos, sabes? Uma idade ainda muito cedo para
certas intuições, uma idade em que se pensa que atrás de um nome há sempre uma
realidade; mas, explicou-me Claire, com ele foi como se aquele nome lhe recordasse
algo que já sabia, ou como se, ao seu conjuro, se destapasse um saber até,
então velado. Deu-me a entender que aquela convicção devia ter-lhe vindo como a
cor do cabelo e a forma do nariz com os mesmos cromossomas, mas isto, claro, é
o que ele diz agora, a forma como o interpreta. O que acontecia então era que,
quando falavam de Napoleão na escola, se levantava e dizia ao professor que
aquele imperador nunca tinha existido: mas como é que sabes? Contra quem lutou
então Pitt, o Jovem? E quem foi vencido, em Trafalgar, pelo almirante Nelson? Pitt,
o Jovem, lutou contra a República Francesa; Nelson venceu o almirante
Villeneuve. Pois foi essa a explicação que Claire me deu, vê lá bem. Há quem
lhe aconteça o mesmo com Deus, que ouve o seu santo nome e o recebe como
palavra vã, e passa o resto da sua vida convencendo os outros de que Deus não passa
disso». In Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados,
Ediciones Destino, 1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com
interpolações mágicas, Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.
Cortesia de Relógio d’Água/JDACT