quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

A Ilha dos Jacintos Cortados. Cartas de amor com interpolações mágicas. Gonzalo Ballester. «Uma vez perguntei a Claire, com base nos primeiros acontecimentos, como é que a ideia lhe tinha ocorrido, ou qual tinha sido o caminho que o levara até ela…»

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«(…)» Napoleão examinadas, as quais, além disso, classifica como sendo de origem ou fonte francesa (Chateaubriand), alemã (Metternich) e inglesa (quem?). Espero que um dia o método de Claire, essa multiplicidade de técnicas pela primeira vez utilizadas na investigação histórica, chegue a ser usual, e que um dia terá igualmente envelhecido e terá de ser superado; hoje é tão abrupta a sua novidade, é tão desafiadora, que não estranho a repulsa com que foi recebida e a chacota geral com que os demais manifestam a sua pessoal e irreparável rotina. Naquela noite, Ariadne, tu lias, fomos progressivamente conquistados por um discurso de estrutura rigorosamente matemática e por uma palavra de expressão rigorosamente poética, de forma que o resultado foi a mais perfeita embriaguez, a mais inconcebível, da inteligência e da sensibilidade. Reconheço que cheguei a estar-me nas tintas para o que se debatia: se Napoleão foi algo mais do que uma palavra favorecida, embalada, amamentada pela necessidade política.
Uma vez perguntei a Claire, com base nos primeiros acontecimentos, como é que a ideia lhe tinha ocorrido, ou qual tinha sido o caminho que o levara até ela, e o que me respondeu não deixou de me chocar: até ouvi palavras pelas quais se calhar nós dois, isto é, tu e eu, estamos agora na ilha, e fora os dias em que as minhas aulas me levam a acompanhar-te de manhã e a regressar contigo ao entardecer, espero-te à hora do crepúsculo como vou fazer agora, e consumo cigarro após cigarro até ouvir a tua buzina; contemplo-te depois enquanto estacionas e como agitas a mão ao descobrires-me, fingindo surpresa: sabes de sobra que estou à tua espera; e depois entras no barco e vens a conduzi-lo até à mão que te ajuda a saltar e à face que recebe o teu beijo. Hoje não tiveste carta. Natália, a ucraniana, perguntou-me por ti. Daqui a dois dias, às seis da tarde, há reunião do departamento: Olga recomendou-me que não te esqueças de comparecer. Hoje mal comi: apenas uma sande na cafetaria e regressei ao gabinete de Claire, porque me mandou recado de que às duas e meia me telefonaria.
Disse-te onde está? Acabou por não telefonar. Estou preocupada. Claire contou-me naquele dia que, quando era pequeno, ao ouvir o nome de Napoleão, este lhe soou como se fosse falso e ao mesmo tempo conhecido, como um nome de nada posto a nada. Tinha sete anos, sabes? Uma idade ainda muito cedo para certas intuições, uma idade em que se pensa que atrás de um nome há sempre uma realidade; mas, explicou-me Claire, com ele foi como se aquele nome lhe recordasse algo que já sabia, ou como se, ao seu conjuro, se destapasse um saber até, então velado. Deu-me a entender que aquela convicção devia ter-lhe vindo como a cor do cabelo e a forma do nariz com os mesmos cromossomas, mas isto, claro, é o que ele diz agora, a forma como o interpreta. O que acontecia então era que, quando falavam de Napoleão na escola, se levantava e dizia ao professor que aquele imperador nunca tinha existido: mas como é que sabes? Contra quem lutou então Pitt, o Jovem? E quem foi vencido, em Trafalgar, pelo almirante Nelson? Pitt, o Jovem, lutou contra a República Francesa; Nelson venceu o almirante Villeneuve. Pois foi essa a explicação que Claire me deu, vê lá bem. Há quem lhe aconteça o mesmo com Deus, que ouve o seu santo nome e o recebe como palavra vã, e passa o resto da sua vida convencendo os outros de que Deus não passa disso». In Gonzalo Torrente Ballester, L Isla de los Jacintos Cortados, Ediciones Destino, 1980, A Ilha dos Jacintos Cortados, Cartas de amor com interpolações mágicas, Relógio d’Água, 1994, ISBN-972-708-232-7.

Cortesia de Relógio d’Água/JDACT