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Catarina
Ataíde. Paço Real de Almeirim. 5 de Outubro. 1548
«(…) A tarde azedara em Almeirim,
e só a chegada de El-Rei nas suas botas, que entretanto tinham lançado moda na
Corte, e naquele seu falar manso e grave apaziguou os ânimos e restituiu ao
paço real alguma normalidade. Vinha de uma caçada às lebres na coutada régia, seguido
pelo bobo Panasco, o negro nascido no Congo. Não soube nunca se Paula
Vicente ou alguma das irmãs Sigeia suspeitavam do meu envolvimento
com Luís Vaz. Mas Joana afiançava-me: podem saber latim, grego, hebraico, árabe
e siríaco, podem até ser mestras em latim e tanger as cordas com a precisão dos
anjos, mas de amor nada sabem! E acrescentava, com a sua habitual malícia: bem
te avisei para não confiares em ninguém, muito menos na infanta. Toda a gente
sabe que mal fareja uma intriga amorosa se torna implacável.
O meu único ensejo era chorar.
Que medonho abalo. Depois de me despedir da Rainha. descendo o joelho ao chão e
tomando-lhe a mão para a beijar, fui-me trancar nos meus aposentos a ler e a
reler todas as rimas e todas as cartas que Luís Vaz me dedicara. A sua alma
oscilava entre a alegria e o desconsolo, a amargura e a saudade, o atrevimento
e a dor da paixão. Era grande, era enorme, era verdadeiro poeta aquele que ali me
derramava torrentes de luz. E amava-me. Jurei-lhe também que jamais amaria outro
homem. Estava certa dos meus sentimentos. Tinha, porém, de me precaver. Paula Vicente
defendera-o com unhas e dentes, mas a devota e severa Rainha tinha-o na mira, lera-lhe
as rimas, e a infanta dona Maria, pelos vistos, não lhe queria bem.
Só me restava uma solução: avisá-lo.
Luís Vaz teria de ter mil cautelas, pois que estava a Corte de olho nele. Fora
uma insensatez tocar na ferida aberta da Rainha. Abri o bufete de pau-preto, tirei
de lá uma palmatória pequena de marfim, um pedaço de papel, a pena e a tinta e
escrevi: meu amor, todas as cautelas são poucas, el-rei Seleuco provocou
um terramoto na Corte. Tua, Catarina de Ataíde. O silêncio era de tal sorte que
acrescentava noite à matéria esquiva com que a noite se tece. Ainda assim, sem
ter podido pregar olho, escapuli-me para o pombal e atrevi-me a suplicar ao
moço pombeiro, toda a noite de vigia, que me enviasse a mensagem ao palácio dos
condes de Linhares, a Xabregas. O moço acedeu, a troco de alguns reais; tinha
dois pombos vindos dos Linhares e logo enviaria um de volta. Insisti para que a
mensagem fosse apenas entregue ao mestre de António Noronha. O moço abriu um
sorriso largo e honesto:
Ora, senhora dona Catarina Ataíde,
estamos sempre a mandar correio para o palácio dos Linhares e nunca o pombeiro
de lá se engana, ora vai missiva para um, ora para o outro»
Descansei e regressei mais leve
aos meus aposentos, agarrando o saio com as mãos para que se não sujasse de
terra. Mas, fosse pela inquietação ou pela revolta, o certo é que pressenti uns
passos miúdos no meu encalço.
Parei. Olhei. Nada vi. Só as tapeçarias
da Flandres e os panos brocados a cobrirem as paredes e a abafarem os meus
passos. Seria o medo, o medo que me ganhava? A culpa era da noite. A noite acrescentava
medo ao medo. Nem o galo havia ainda cantado. O Paço de Almeirim continuava mergulhado
em silêncio. Faltava-me ainda atravessar um bom pedaço de noite e de angústia.
Contigo sou tudo, meu amor maior,
que Deus te proteja, suspirei, enquanto ajeitava as almofadas de penas,
tentando adormecer». In Maria João Lopo Carvalho, Oficina do
Livro, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-488-6.
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